O "DELÍRIO EM PROSA " de CERES ALVIM
Há mais de três décadas Brasília tem uma ilustre residente: a escritora
Ceres Alvim, admirada e amada por seus leitores e amigos, gratos porque
persistiu em encontrar o tempo e a determinação necessários para
produzir obras publicadas como: "Lágrima Comprida" (1960), "Adivinhão"
(1973), "Pau-de-arara do céu" (1977), "A Casa do relógio de sol" (1988),
"Cantata de Natal" (1991), "Poema dentro da xícara de chá" (1992),
"Matinas no portão do céu" (1993), "Um minuto celestial" (1994),
"Serenata para a Boneca" (1995) e "Um navio no telhado". O delírio dos
seus fãs, encontrados no Brasil e no exterior, começa pela leitura dos
títulos e continua até a última página.
As quatro primeiras obras foram assinadas com o pseudônimo Cândida
Severiana - homenagem à sua querida avó e madrinha. A partir de "Cantata
de Natal", Ceres assinou seu nome verdadeiro e contou com a colaboração
do neto Pablo Alvim de Miranda na criação das capas e ilustrações dos
livros, passando a oferecê-los como presentes natalinos à sua família e
a seus muitos amigos. Para o Natal de 1998, entregou-nos mais uma
preciosidade literária, o "Delírio em Prosa", com projeto gráfico de
Mário Viggiano.
Considerando que foi uma edição particular, com poucos exemplares, com a
permissão da autora selecionamos vários trechos desse lançamento sem
alarde...
É uma história de pessoas que sofrem e buscam livrar-se das dores por
meio do espiritismo, da mediunidade, entretanto, o texto mostra-se
religiosamente eclético, alternando realidade, surrealismo, visão
interior, magia ocular que se manifesta em descrições de um lirismo
encantador, o que suaviza a temática e o drama dos personagens.
A minha escolha foi propositadamente subjetiva e católica romana,
espelhando-se na dedicatória de Ceres no livro que recebi de suas mãos
abençoadas de escritora. ("Para Therezita, um retrato de nossa gente, um
pedaço de nosso Sertão. /Deus é Beleza, é Formosura!/ Um abraço e Feliz
Natal 98. Da amiga e do amigo, Ceres e Pablo / Brasília, 24/12/98") Que
outros leitores encontrem, também, os seus parágrafos preferidos!
(...)"Seguiram uma placa indicando Vianópolis e passaram a contornar
velhos quintais, até saírem do perímetro urbano. Aí descortinaram uma
linda paisagem dos dois lados da estrada reta e bem conservada.
Flamboyants vermelhos floridos, fazendas organizadas, cercas bem feitas.
Grandes áreas de terra sendo aradas para o plantio. A cor da terra
impressionava pela beleza. Vermelha arroxeada de beterraba. Uma única
árvore frondosa em toda a extensão de terra revolvida. Flamboyants
amarelos começaram a surgir. Na porteira de uma fazenda, dois
flamboyants floridos: um vermelho, um amarelo. Lado a lado, entrelaçando
os galhos de flor. Esplêndidos! Ah, Van Gogh, se você conhecesse nossos
flamboyants! - Lore pensou.As três viajantes comentavam e se encantavam
com as árvores. Em Brasília o flamboyant amarelo é mais raro. Aqui é
maioria."
(...) "Um trator infatigável, arando, arando."
(...) "Hoje a paisagem está domesticada."
(...) "Voltaram a admirar as ondulações de terra vermelha, fazendas,
flamboyants, mangueiras, rendadas de bilros, carregadas de frutos."
(...) "Velhas árvores frondosas. Uma delas, a mais bela, cantava alto.
Voz de soprano, de alto registro. De periquitos e papagaios. A árvore
vestia-se toda de verde e dourado, com florinhas amarelas. Cantava a
bela feiticeira da cidade dos espíritos. Da cidade delirante: ESPERANÇA.
Sara estacionou o carro à sombra da cantante e dirigiram-se à pensão,
logo à frente."
(...) "O que me interessa e encanta é o dom da cura. Este dom, penso que
é distribuído indiscriminadamente por Deus. A católicos, protestantes,
espíritas, budistas. Quando menina, conheci em Belo Horizonte um padre
que tinha este dom. Padre Eustáquio. Àquela época ele já era famoso.
Estive com ele. Toda a sua figura era a de um santo. Tinha o dom da
cura."
(...) "A árvore com voz de periquitos cantou. Um sabiá de papo-roxo
cantou."
(...) "No telhado escurecido do Centro Espírita o sabiá de papo-roxo
trinou. Com suas flautas acordou a manhã. Depois a pomba-rola cantou: -Fogo-pagou!
Fogo-pagou! A prima-dona cantou, emitiu seus agudos na ópera sertaneja.
De seus cabelos verdes, de seu decote, dos babados de seu vestido
dourado de sol voaram seres alados: jandaias, periquitos, papagaios. As
jandaias em formação, como pequenos aviões, gritando muito. O sabiá do
papo-roxo desceu do telhado e começou a passear pela rua. Na lavanderia
da pensão, oito beija-flores revezavam-se diante de uma garrafa de
plástico, enfeitada de flores. Água com açúcar."
(...) "Ao mesmo tempo, os galos começaram a cantar, a festejar a noite.
A árvore cantora estava vestida de verde escuro. O céu estrelado
refletia-se, brilhava nos espaços vazios de sua folhagem. Resplandecia.
Um vitral de folhas, flores e estrelas. Os pássaros verde-amarelos
dormindo à sombra de seus esconderijos."
(...) "Belezinha queria que a mãe lesse alguma coisa para ela: - O Salmo
91 num livrinho que ela trouxera.Lore procurou o Salmo e leu: - "Aquele
que habita no esconderijo
do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará".
(...) "De repente, o assunto mudou de rumo, derivou. Chegou à
encruzilhada do Ciúme. Neusa contou que as duas, ela e Lourdes, eram
mulheres de cantores sertanejos famosos. Uma dupla caipira. E passou a
relatar o assédio dos fãs e a luta diária das duas com o monstro de
olhos verdes chamado Ciúme."
(...) "Belezinha sentia falta de cantos e orações."
(...) "Por trás dos varais, a mangueira do quintal vizinho, exibia suas
mangas sobre o muro. A árvore resplandecia de beleza. Mangas verdes,
comuns, compridas. Penduradas em longos cabos, como colares e brincos.
Os frutos enfeitavam a vaidade da mangueira. Os beija-flores, grandes e
negros, cobertos de purpurina dourada, revezavam-se diante da garrafa de
plástico. E brigavam, perseguindo-se uns aos outros. O gato faraó
esticava as pernas, andava sorrateiro, sabe-se lá com que pensamentos."
(...) "Ela foi até lá e sentiu-se em seu ambiente. Amava os bichos, a
simplicidade das pessoas do meio rural, suas conversas, sua postura
diante da vida. Integrou-se. Encantou-se com os beija-flores."
(...) " A mãe riu. A filha se parecia ao pai, não com ela. Aventurava-se
por lugares primitivos, exóticos, impensáveis para Lore. Selva,
cachoeiras, casas palafitas, macacos pendurados em seu pescoço. Afeição
exagerada aos bichos. Só os insetos a perturbavam."
(...) " - Esta visão é muito triste, Belezinha! Prefiro o céu dos
católicos, com anjos cantando músicas de Vivaldi e Bach. Talvez um anjo
tocando um trompete..."
(...) "À noite o concerto é dos cachorros. Negrinha iniciou, latindo
fino e demorado. O cachorro marrom, vizinho dela, latiu duas vezes. Bem
rouco. Ela continuou, insistente. Outros cachorros responderam. Até que
todos os da cidade do Além latiram em coro. Galos cantaram. Um cavalho
relinchou duas vezes. Chuva. Às quatro da madrugada voltaram a cantar os
galos. Um respondendo ao outro, em desafios. Uma vaca mugiu duas vezes.A
árvore-laranjeira floresceu, desabotoou seus botões. Enfeitava-se de
pequenos buquês brancos. De noivas. Abelhas e borboletas festejavam-na.
Amanheceu." Que sensação maravilhosa a que estou experimentando como
leitora: estou na cidade, diante de um computador, apenas
fisicamente...minha mente, o meu coração, estão nos lugares descritos
por Ceres Alvim, junto às arvores, contemplando e ouvindo a natureza!
Respirando a magia lírica da autora, pareço estar compartilhando de seu
"Delírio em Prosa"... E o que mais se pode esperar de uma escritora?
Brasília, 13 de janeiro de 1999
Theresa Catharina de Góes Campos
Autora dos livros:
"O progresso das comunicações diminui a solidão humana?"
e "A TV nos tornou mais humanos?"
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