A PRINCESA ISABEL DOS NOSSOS DIAS

por Marina Oliveira
transcrito do jornal Correio Braziliense
Brasília, domingo,
28 de outubro de 2001

Valderez Maria e sua equipe percorrem o interior do Brasil para libertar trabalhadores mantidos como escravos em grandes fazendas. Ameaças de morte viraram rotina na vida dessa funcionária do Ministério do Trabalho

Valderez: ''Represento o Estado e faço cumprir a lei''

As mãos brancas e rechonchudas repousam na altura da barriga da mulher de óculos, com fala de avó. As mesmas mãos desafiam em riste fazendeiros e pistoleiros, comandam agentes da Polícia Federal e devolvem a dignidade a trabalhadores escravos. Funcionária do Ministério do Trabalho,Valderez Maria Monte Rodrigues, 57 anos, libertou cerca de mil camponeses, todos homens, nos últimos seis anos, no sul do Pará e no Mato Grosso.

A escravidão no Brasil foi abolida em 1888 pela Lei Áurea, decreto assinado pelas mãos de outra mulher, a Princesa Isabel, filha do imperador Pedro II. No papel, mais de 1,6 milhão de negros foram libertados. Correspondiam à metade da população brasileira à época. Na prática, tiveram poucas chances de ascensão social e ainda hoje formam a grande maioria dos brasileiros abaixo da linha da pobreza. Valderez alforria homens feitos escravos expedindo uma carteira de trabalho provisória, quase sempre o primeiro documento da vida dessas pessoas. Tem esse poder por ser coordenadora na região norte do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. Quase sempre o primeiro documento da vida desses brasileiros.

Nas cidades de Marabá e Xinguara, no Pará, ela só pisa sob forte proteção. No jargão da Polícia Federal, Valderez tem ''prioridade 1'' quando está na região. Significa que existe um risco real de um atentado contra a vida dela. Os fazendeiros odeiam Valderez e costumam chamá-la de ''truculenta''. Um título que acreana exibe com orgulho e ironia.

''Eles armados até os dentes e falam isso de mim?''

Em Redenção, também no Pará, ela recebeu recado de que o carro da fiscalização seria queimado para servir de exemplo. No meio de uma ação, escoltada pela PF, teve uma mala com as provas contra os fazendeiros roubada de dentro do carro do grupo móvel. Valderez relata as ameaças no mesmo tom manso usado para falar dos quatro filhos (três mulheres e um homem).

O grupo de fiscalização só encerra a ação depois que os patrões assinam as carteiras de trabalho dos agricultores e pagam o que lhes é devido, de acordo com a lei. Alguns recebem até R$ 1.000, em dinheiro. A conversa com os advogados, contadores e representantes dos proprietários que chegam de avião de São Paulo e Goiás são difíceis. O grupo móvel conta principalmente com o flagrante do trabalho escravo e o medo dos fazendeiros para fazê-los pagar logo. ''Temos de ser rápidos na negociação para não perder esse trunfo''.

Jagunços

Certa vez , Valderez passou oito dias com sua equipe dentro de uma fazenda cheia de jagunços para garantir o acordo. Requisitou a casa do vaqueiro e lá se instalou. A equipe dividia-se em turnos para dormir e ninguém dava as costas para as janelas com medo de tiro. Os 300 homens escravizados naquela propriedade receberam seus salários. Resultados como esse conquistaram o respeito da coordenação do grupo móvel em Brasília. No Ministério do Trabalho, ela é considerada a mais experiente libertadora de escravos.

O dinheiro entregue a homens rudes, provoca lágrimas de gratidão. Um sentimento que Valderez dispensa. ''Represento o Estado e faço cumprir a lei. Isso é uma obrigação minha e nunca um favor'', diz.

Esse discurso, ela aprendeu em 1968 e nunca mais esqueceu. Com 24 anos, recém-saída da escola normal, pegava um jipe saia à noite, sem hora para voltar. Ia na direção dos seringais de Guajará-Mirim, onde vivia em Rondônia, participar de aulas radiofônicas para seringueiros patrocinadas pelo Movimento Eclesial de Base da Igreja Católica.

Passou para um concurso do Ministério do Trabalho em Campo Grande em 1980 e começou a fazer faculdade. Oito anos depois, virou auditora fiscal e foi fiscalizar o trabalho infantil em carvoarias e destilarias de álcool. ''Não acredito em analisar papel, fiscalização para valer tem que ir até o local e ver''.

O ministério montou o grupo de fiscalização em 1995 e Valderez fez uma consulta pública para saber quem teria interesse em participar. Valderez e outras três mulheres se ofereceram, sem receber nenhum tostão a mais.

''Encontrei um projeto para o resto dos meus dias'', diz Valderez ao se referir ao grupo móvel. Também foi obrigada a escolher entre a nova função e o casamento de quase 30 anos. Uma opção encarada com certa naturalidade por mulheres de sua geração. ''Ele queria que eu estudasse para depois pregar o diploma na parede''. O casal se separou em 1996.

Em liberdade

Entre 1999 e 2000 foram libertados 1.505 trabalhadores.

Até setembro de 2001 foram 953 escravos libertados

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