Correio Braziliense Brasília, sábado, 03 de novembro de 2001 Um diálogo quase impossível Dom José Freire Falcão O terrorismo adquiriu, a partir dos anos 70, proporções inquietantes. Assumido por minorias que julgam ser este o único caminho para alcançar seus objetivos: a destruição de um Estado ou de uma cultura julgada a encarnação do mal; ou, ainda, para pressionar a opinião pública em favor de uma causa ou de uma posição ideológica ou religiosa. João Paulo II, na encíclica Sollicitudo rei socialis, de dezembro de 1987, já observava: ''Não se pode fechar os olhos sobre outra chaga dolorosa do mundo de hoje: o fenômeno do terrorismo, entendido como o propósito de matar e destruir sem distinção homens e bens para criar precisamente um clima de terror e insegurança, não raro com a captura de reféns. Mesmo quando se aduz como justificação desta prática desumana uma ideologia qualquer ou a criação da uma sociedade melhor, os atos de terrorismo não são injustificáveis''. O terrorismo é intrinsecamente perverso e pervertedor dos espíritos e das instituições. Mas não seria possível o diálogo com os terroristas? É praticamente impossível, dada a visão que têm de uma sociedade ou de uma situação político-social considerada essencialmente má. Impossível, porque não sabem distinguir entre a verdade e o erro. Seus olhos se fixam doentemente numa determinada direção e num objetivo único, o qual deve ser perseguido a qualquer custo e com quaisquer meios. Seu fanatismo ideológico-religioso os impede de raciocinar e menos ainda de criar pontes para o diálogo. Para eles não há meios-termos. Aquilo que julgam ser o mal deve ser destruído mesmo com o apocalipse geral. Para eles de nada vale uma opinião pública adversa. Para o terrorismo suicida o Ocidente é o grande satanás, que deve ser combatido em nome de Deus. E os Estados Unidos são a corporificação do mal. O diálogo supõe clarividência e humildade. Impossível na arrogância cruel do terrorismo. Antes, sua clarividência está voltada para a escolha dos meios e dos momentos mais oportunos para alcançar seus objetivos de morte e destruição. Não importa que inocentes sejam sacrificados. Porque todos são julgados responsáveis por uma sociedade vista como a expressão do mal. Em seu ódio contra pessoas e instituições, o terrorista não vê ninguém, nem a si mesmo. Rose, uma personagem da peça dramática L'Iconoclaste, do filósofo francês Gabriel Marcel, exclama: ''Não somos sozinhos, ninguém é só... há uma comunhão dos pecadores... há uma comunhão dos santos''. Para nós, cristãos, há uma comunhão dos santos. Uma comum união em Cristo de todos os batizados. Por isso, os méritos de uns são méritos dos outros. Mesmo o pecado não quebra de todo esta íntima união de uns com os outros. Embora a dilacere. Pois as falhas de uns repercutem sobre todos. O terrorista, no entanto, é sozinho. Os terroristas não estão realmente unidos entre si, a não ser no objetivo comum de destruição e morte. São eles um arquipélago de ódios e não ilhas de amor interligadas. E a comunhão dos santos é a comunhão no amor. Amor que não deserta de todo no coração do próprio pecador. No terrorista há o ódio. E o ódio não une, não lança pontes. Entre eles não há propriamente solidariedade, mas convergência de vontades independentes para um objetivo cruel. Eles não se encontram. Pois o encontro só se dá entre um eu e um tu no nós do amor. Mas, se juntam no planejamento de ações diabólicas. Rose, personagem da peça dramática Le Coeur des autres, de Marcel, exclama: ''Só há um sofrimento é ser sozinho''. Para o terrorista, fixado em seu isolamento, o sofrimento são os outros. Poderiam colocar em seus lábios as palavras terríveis de Sartre: ''O inferno são os outros''. Marcel, ao tomar conhecimento dessa asserção, observou: ''Para mim, ao contrário, o céu são os outros''. E onde há amor, há perspectiva de salvação. ''Nada jamais se perdeu para um homem, se ele vive um grande amor ou uma verdadeira amizade, mas tudo está perdido para aquele que é só'' (Gabriel Marcel). Não há esperança de salvação, de conversão ao bem e aos outros, para quem se fixou num projeto final de demolição. No entanto, no coração do homem passa sempre, por pequenina que seja, uma réstia de luz, que pode clarear o caminho do bem e da verdade. Capaz de destruir as muralhas do ódio e da maldade e de abrir uma brecha por onde penetre a luz do amor, que leve a conversão aos irmãos. Se é extremamente difícil o diálogo com um terrorista, não é de todo impossível. Porque não perdeu ele a humanidade. E a força de Deus é mais poderosa que todo o mal existente na terra. Dom
José Freire Falcão é cardeal-arcebispo de Brasília |