DEPOIMENTO SOBRE GARRINCHA E PELÉ

NILTON SANTOS, “a Enciclopédia”, escreveu no Correio Braziliense, em 24/10/01

DIFÍCIL DE ACREDITAR

É pura realidade, Pelé garantiu que, apesar da evolução do futebol, agora altamente profissional e competitivo, seria, para ele, muito mais fácil fazer gols hoje. Chegaria até mesmo aos três mil. A afirmação não tem nada de cascata ou tentativa de impressionar a garotada.

         A cada oportunidade, sem medo de tornar-me um chato saudosista, reitero que, jogando hoje, Pelé e Mané, principalmente, fariam coisas inimagináveis com essas defesas que aí estão.  Os que falam do antifutebol praticado atualmente não sabem o que Pelé e Garrincha recebiam de pancada.   Os árbitros de então, como os de agora, não se preocupavam em coibir a violência contra o talento.

         O que os zagueiros faziam com Pelé e Mané era digno de registro policial e pena de reclusão.   Ambos sofreram muitas contusões em suas carreiras.  Naquela época, não contavam com medicina esportiva evoluída nem com métodos de preparação física como os de agora.  Isso sem falar em uniformes e chuteiras mais leves, no conforto dos hotéis e na rapidez das viagens.

Aquele tempo era de pau puro em campo e falta de estrutura fora dele.   Até de navio do Lloyd nós viajamos para o Uruguai.  Do Rio a Montevidéu, gastavam-se de dois a três dias.  Muita gente enjoava.  Como ninguém era doido a ponto de pular, o jeito era segurar a barra e pedir a Deus para a coisa acabar logo.

         Para minha felicidade, um dos monstros sempre esteve do meu lado.  Enquanto eu dormia tranqüilo, o marcador de Garrincha, fosse quem fosse, tinha pesadelos. O mesmo acontecia com os marcadores do Rei. Jogassem Pelé e Garrincha hoje, portanto, coitado do Scolari.  Com seu conceito, não ficaria 24 horas à frente da Seleção.

         A declaração de Pelé me fez lembrar um fato ocorrido na escolinha Mané Garrincha, da Secretaria de Esporte e Lazer.  Certa manhã, em razão das chuvas tive de cancelar o treinamento.  Levei os meninos para a sala de reuniões e aproveitei para mostrar a eles um pouco do bom futebol que levou o Brasil ao tetracampeonato.  Coloquei no vídeo uma fita de Mané Garrincha para que a garotada conhecesse melhor um dos jogadores fundamentais na conquista de dois títulos (Suécia e Chile), aquele que deu nome ao nosso estádio e à  escolinha.

         Após ver o Mané fazer verdadeiros carnavais em cima de seus marcadores, nacionais e estrangeiros, não foram poucos os meninos que consideraram a fita uma montagem. Montagem! Não acreditaram que alguém, em meio a pancadas de todos os lados, conseguisse fazer o que ele fazia.  Tenho passado e repassado esse vídeo a cada novo grupo de alunos.  A reação é geralmente a mesma.  Os garotos acham que não passa de montagem.  Não sabem, claro, que após o Mundial do Chile, no qual Mané fez gols com a perna direita, com a esquerda e de cabeça (que não era o seu forte), um jornalista inglês colocou num jornal de seu país a frase que eternizou o craque: “Afinal, de qual planeta veio Garrincha?”

         O futebol que Pelé e Mané jogaram, se levado hoje aos gramados, com certeza seria o mesmo.  Ou mais eficiente ainda.  O próprio Romário destacou esse detalhe ao afirmar que, na atual conjuntura, nunca foi tão fácil fazer gols.

         O Raí, por sinal, tem aparecido na TV em um comercial que merece registro.  No vídeo, aparece o Mané fazendo algumas das suas muitas piruetas. É real, garotada.  Nada de montagem.