Diálogo entre católicos e muçulmanos

Brasília, sexta-feira,

09 de novembro de 2001

Diálogo entre católicos e muçulmanos

A violência destrói a imagem do Criador nas suas criaturas e jamais deveria ser considerada como fruto das convicções religiosas

Dom Raymundo Damasceno Assis

Pio XII, no dia 3 de agosto de 1946, foi o primeiro papa a receber, em 1.300 anos de história do islamismo, uma delegação árabe-muçulmana. Dezenove anos mais tarde, em 28 de outubro de 1965, o Concílio Vaticano II promulgou a Declaração Nostra Aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs. O documento, sem precedentes na história da
Igreja, conferiu um grande impulso ao diálogo com os seguidores de outras religiões, entre elas o islamismo. Nele, chama a atenção a nova maneira como a Igreja vê os muçulmanos (nº 3).

A declaração procura descobrir o que há de comum entre os muçulmanos e a fé cristã: a crença em um Deus uno, misericordioso e onipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens; a veneração a Jesus como profeta e de Maria, sua Virgem Mãe, a quem invocam com devoção; a espera do dia do juízo, quando Deus retribuirá as boas obras a todos os ressuscitados. Além dessas verdades de fé que a une aos muçulmanos, a Igreja preza os valores morais defendidos pelo Islã e as práticas religiosas com as quais rende culto a Deus onipotente.

A partir do Concílio Vaticano II, o diálogo da Igreja com os muçulmanos não mais se interrompeu. Ao contrário, vem-se intensificando.

No âmbito da Igreja, foi criado o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. O órgão, há mais de 30 anos, envia uma mensagem aos muçulmanos no encerramento do Ramadã, mês sagrado em que se dedicam ao jejum e a outras práticas religiosas, como a oração e a esmola. No ano em curso, em 6 de maio, pela primeira vez um papa visitou uma mesquita, a grande mesquita Omayylde, em Damasco.

A Igreja não ignora as discordâncias e a oposição que existiram, por longo período, entre cristãos e muçulmanos e está ciente de que, no contexto globalizado atual, o anúncio do Evangelho, acompanhado do testemunho da fé, tornou-se inseparável do diálogo ecumênico e
inter-religioso. Sabe também que é preciso purificar a memória por meio do perdão e da compreensão mútua, a fim de se libertar dos preconceitos e ressentimentos do passado. ''A reiterada vingança mortífera deve ser substituída pela novidade libertadora do perdão'' (João Paulo II, Mensagem para o Ano Novo de 1997). Insistindo na necessidade de entendimento, João Paulo II, na visita a Damasco, convidou cristãos e muçulmanos a pedirem perdão ao Onipotente por todas as vezes que se ofenderam uns aos outros e a oferecerem o perdão mutuamente. Formulou votos para que o diálogo entre a Igreja Católica e o Islã avance e que
as discórdias, inimizades e oposição que existiram entre as duas religiões no passado sejam superadas e caminhem em boa parceria e para o bem da família humana. Referindo-se ao ano de 2001, proclamado pelas Nações Unidas como o ''Ano Internacional do Diálogo entre as Civilizações'', João Paulo II manifestou a esperança de que ''as duas grandes comunidades religiosas vivam em diálogo respeitoso, e nunca mais como comunidades em conflito. Que aos jovens sejam ensinados os modos de respeitar e compreender, de maneira a não serem orientados para fazer mau uso da própria religião, promovendo ou justificando o ódio e a violência. A violência destrói a imagem do Criador nas suas criaturas e jamais deveria ser considerada como fruto das convicções religiosas''.

Com o propósito de levar adiante o diálogo com os muçulmanos, conforme desejo de João Paulo II, a presidência da CNBB dirigiu carta aos bispos do Brasil, em 26 de setembro último, solicitando-lhes que procurem conhecer a comunidade muçulmana em suas dioceses; que ofereçam ajuda aos necessitados de outras religiões; que criem instrumentos de diálogo entre a comunidade católica e a muçulmana; que promovam entre as pessoas o conhecimento da religião e da cultura islâmica; que incentivem a formação de grupos ''Fraternidade Cristã-Islâmica''; e, onde possível, criem ''Fraternidades Abraâmicas'' entre judeus, cristãos e muçulmanos, assim denominadas pelo fato de essas três religiões terem a mesma origem em Abraão.

Os atos terroristas ocorridos em 11 de setembro último, durante o ''Ano Internacional do Diálogo entre as Civilizações'', interpelam a consciência de todos e de cada um. Convocam os cristãos e os seguidores de outras religiões, no atual contexto globalizado e caracterizado pelo pluralismo étnico, cultural e religioso, a superar toda forma de intolerância religiosa e proselitismo, pois o fanatismo, o ódio e o terrorismo profanam o nome de Deus e desfiguram a autêntica imagem do homem (João Paulo II, viagem apostólica ao Cazaquistão, Encontro com os Representantes do Mundo da Cultura, da Arte e da Ciência do Cazaquistão, 24 de setembro de 2001). Aqueles atos convidam-nos, sobretudo, à urgente tarefa de construirmos, por meio do diálogo, uma civilização de amor e de paz.

Dom Raymundo Damasceno Assis, bispo-auxiliar de Brasília, é secretário-geral da CNBB

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