PARA CONSULTOR DA UNESCO,  NATIVOS  SÃO  "CIENTISTAS" 

Theresa Catharina de Góes Campos

Especialista em transferência de tecnologia e negócios internacionais, o professor Christian Meyer, brasileiro radicado na França, teve o seu primeiro contato profissional com a Amazônia em 1983, quando escreveu um livro, prefaciado pelo Colège de France. Publicada pela UNESCO, organização da qual é consultor, a obra analisa as plantas medicinais utilizadas pelos índios. Mestre convidado junto às Universidades de Paris, lecionando na área de Biotecnologia e Ciências do Meio Ambiente, Meyer vem prestando consultoria a importantes grupos tecnológico-industriais. Nas conferências que pronunciou em países europeus, os seus estudos despertaram interesse não apenas dos intelectuais, como da nova geração de ecologistas, e dos grandes laboratórios farmacêuticos e de cosmetologia. Ele não tem medido esforços para que a "tecnologia tradicional" - ou a sabedoria milenar dos nossos índios - no tratamento com plantas medicinais, venha a representar, na balança dos investimentos, tanto quanto a tecnologia de ponta das nações desenvolvidas. Enfatiza que cerca de 2/3 dos medicamentos atuais provêm das plantas; e cerca de 2/3 das espécies vivas do planeta - patrimônio genético e biodiversidade - se encontram na Amazônia.

Sobre as dificuldades no processo de transferência tecnológica, Meyer faz uma comparação irônica:

"Se a riqueza da biodiversidade amazônica deve ser considerada como patrimônio da humanidade, posto que, criada por Deus para todos os homens, por que, então, a tecnologia de ponta originária do cérebro humano - também criado por Deus - não seria igualmente patrimônio da humanidade, podendo assim estar disponível a nós, amazonenses?"

O valor dessa biodiversidade, para a economia e a população regionais, já está sendo reconhecido por industriais da área, esperando-se que alguns dirigentes políticos do Primeiro Mundo e grupos de ecologistas passem da posição de crítica à política desenvolvimentista da região, a uma postura de apoio à solução dos problemas reais do ecodesenvolvimento.

DOCUMENTÁRIO  SOBRE  A  AMAZÔNIA

Amigo fiel da Amazônia e defensor permanente do desenvolvimento racional e auto-sustentado de suas riquezas naturais, fundamentado no conhecimento milenar de sua população nativa - "verdadeiros cientistas da selva" - o professor Meyer trouxe a Manaus, recentemente, uma equipe de filmagem da emissora de TV  francesa Antène 2 RF 3, da qual é consultor especial. O documentário realizado objetivou, primordialmente, transmitir ao Primeiro Mundo uma imagem verdadeira, realista, visando desmitificar conceitos inverídicos, veiculados pela imprensa internacional e motivados, sobretudo, por razões sensacionalistas e outros interesses econômico-financeiros.

Meyer denunciou que essa visão preconceituosa procura tirar a culpa dos países ricos, causadores da devastação e do extermínio de seus próprios recursos naturais, exigindo das nações pobres o congelamento de suas fontes de recursos.

O Ministro da Pesquisa e Tecnologia da França está interessado em fazer um acordo de cooperação privilegiada com o Estado do Amazonas, nas áreas de biotecnologias  equatoriais e tropicais. Ao transmitir essa notícia ao Governador Gilberto Mestrinho, Meyer explicou que tais acordos permitirão que o Amazonas explore harmoniosamente as suas riquezas naturais em relação à preservação ambiental.

Quanto ao documentário da emissora francesa, foi a primeira vez que uma grande produtora do Primeiro Mundo buscou a divulgação de uma imagem positiva e criativa da região. Procurando evitar "as armadilhas de um jornalismo tendencioso", o cientista sugeriu a participação exclusiva de crianças, procedentes de continentes diversos, que vieram a Manaus para atuar como repórteres. Os jornalistas-mirins entrevistaram os caboclos da região e o governador Gilberto Mestrinho.

Cumprindo outro objetivo de sua viagem, Meyer discutiu aspectos do desenvolvimento sócio-econômico com a mais alta autoridade do Estado, empresários e cientistas da região. Seu primeiro contato com o governador ocorreu quando o professor Meyer preparava uma Conferência sobre a Amazônia, promovida pela UNESCO, o Institut de Sciences Politiques  e  o Service de Premier Ministre da França.

No encerramento da Conferência, o especialista brasileiro apresentou um pronunciamento do próprio governador, relacionado ao assunto em questão. A partir desse contato, Meyer ficou bastante sensibilizado com as idéias de Gilberto Mestrinho, por ele qualificado como um "humanista pragmático", passando a adotar a causa amazônica e, em particular, a amazonense. Ao invés de atuar somente como intelectual e filósofo, conferencista, autor de publicações e consultor  de tevê, passou a examinar a realidade "in loco", decidindo permanecer mais algumas semanas no Amazonas, visando melhor conhecer o funcionamento das estruturas sócio-econômicas. Entrou em contato, portanto, com autoridades governamentais, sem negligenciar o universo empresarial, dos pesquisadores e da população regional.

PROPOSTAS  CONCRETAS  PARA  O DESENVOLVIMENTO  REGIONAL

Joint-ventures, joint-research   e    joint-marketing  são as propostas concretas que Christian Meyer trouxe, como proposições pragmáticas, escritas, tanto do governo francês, quanto de grupos industriais sólidos, europeus e japoneses, tais como grandes laboratórios químicos, farmacêuticos e de cosmetologia de renome internacional. Do governador Gilberto Mestrinho, o consultor da UNESCO  recebeu a confirmação de apoio institucional aos diferentes projetos com os grupos interessados em se estabelecer no Estado, objetivando o desenvolvimento da região e o benefício da população.

As áreas de cooperação e negociação são múltiplas, desde a simples importação de matérias-primas beneficiadas, como madeira e minérios, até a implantação de usinas polivalentes de beneficiamento de produtos agro-alimentares (cacau, castanha, guaraná, dendê) e  de purificação de extratos de plantas medicinais, para as indústrias química e farmacêutica. Entre os produtos nativos, estuda-se a viabilidade de introduzir o cupuaçu no mercado internacional, como substituto parcial do cacau para a produção do chocolate. Da semente do cupuaçu, extrai-se um óleo, rico em propriedades úteis à cosmetologia.

Sempre valorizando o know-how  indígena, Meyer pesquisa os benefícios do guaraná e outras plantas nativas, na medicina tradicional dos "cientistas da selva".

I  FÓRUM  AMAZÔNICO:  PENSAR  MEIO AMBIENTE  É  PENSAR  AMAZÔNIA

Um  esforço conjugado do Parlamento Amazônico, da Universidade Pan-Amazônica e da Fundação Amazônia Internacional, o  I  Fórum Amazônico atingiu todos os objetivos pretendidos, segundo os seus promotores, que o analisaram em suas reflexões e propostas de soluções para os problemas do desenvolvimento comum e integrado dos Países da Comunidade Amazônica. Refletindo sobre o meio ambiente em termos de Amazônia, e esta região como um autêntico desafio, os organizadores do evento destacaram que se constitui numa grande esperança, essa tarefa de se construir, para a humanidade, um modelo e uma referência de desenvolvimento sustentável e socialmente justo.

A   Macro-Região  Amazônica, apesar de concentrar situações extremas, que vão desde a  prostituição em massa de menores, até a incidência de doenças carenciais e indigência social crônica, tem a seu favor a concentração da maior riqueza mundial em biodiversidade, recursos naturais hídricos e ecossistemas intocáveis. Os problemas são superáveis, inclusive porque resultam de uma longa exploração colonial e de elites retrógradas, que tradicionalmente colocam em último plano a questão social ou a prioridade do mercado interno. Por conseguinte, seria infinito, o seu potencial para o desenvolvimento sustentado, vinculado a atividades produtivas preservacionistas e à geração do pleno emprego.

Os oito países da bacia amazônica têm um tamanho equivalente à Europa, incluindo a ex-União Soviética a oeste dos Urais: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, todos unidos pela mesma floresta e por bacias hidrográficas comuns. Medicamentos de última geração são produzidos pelas grandes corporações farmacêuticas, utilizando o maior banco genético do mundo, mas a comunidade das nações amazônicas não recebe qualquer benefício com esse processo; e os países ricos, através do patenteamento da tecnologia que dominam, terminam, em última instância, tendo controle total sobre nossos recursos genéticos. A exuberância biológica da Amazônia gera constantemente  divisas para o Primeiro Mundo, sem a devida cobrança de royalties  para a utilização de nossas riquezas naturais.

O I  Fórum Amazônico recomendou que essa questão não pode mais ser protelada, exigindo o fim da exploração em via de mão única.

Theresa Catharina de Góes Campos
Jornal "Persona" - Brasília, 1993