A DEMOCRACIA CONCOMITANTE por Joaquim Falcão * A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NASCE, ESTÁ NASCENDO, ALIÁS, COMO FÓRMULA POLÍTICA INTERMEDIÁRIA ENTRE A DEMOCRACIA DIRETA E A REPRESENTATIVA. NELA OS CIDADÃOS BUSCAM TAMBÉM CONCRETIZAR O IDEAL DE PARTICIPAR DA GESTÃO PÚBLICA Antônio Ermírio de Moraes, em sua coluna de domingo na Folha de S. Paulo sob o título “ONGs: um novo poder?”, toca em tema importante para o Brasil de hoje. Quem as ONGs representam? Qual a fonte de sua representatividade? Tema prático e não teórico. Tanto mais importante quando sabemos que em princípio são os partidos políticos que nos representam, que representam o povo. Eles pretendem deter o monopólio da representação dos cidadãos. Mas acontece que a representatividade dos partidos está em crise: o número de cidadãos filiados é proporcionalmente inexpressivo e a fidelidade partidária dos políticos é cada vez mais volátil. Nesse contexto de monopólio em crise, as ONGs estariam conquistando representatividade paralela e crescente. De onde viria essa representatividade que lhes dá tanto poder, às vezes arrogante poder? Qual sua origem? Qual sua legitimidade? A situação se complica quando percebemos que, se os partidos estão em crise, as ONGs, não. Nem aqui, nem no mundo. Ao contrário. Vão muito bem, obrigado. É um fenômeno internacional. É cada dia maior o número de novas ONGs e de cidadãos que ali vão trabalhar, ou as apóiam de diversas maneiras, sobretudo os jovens, constituindo inclusive crescente mercado de trabalho para os brasileiros. Quando a ONU declara ser este o Ano Internacional do Voluntariado, na verdade reconhece também a importância das ONGs, um dos principais canais do voluntariado. Não são poucos, pois, os políticos eleitos, sobretudo no âmbito municipal, que vêem as ONGs como concorrentes. Como ameaça a si próprios. Os líderes das ONGs em muitos estados conquistaram grande espaço na mídia. Transformam-se em verdadeiros formadores de opinião, influentes no eleitorado. Interlocutores poderosos do poder político e do poder econômico. Às vezes com e às vezes contra. Justamente por isso muitos partidos, numa estratégia eleitoral de médio prazo, criam e apóiam ONGs. Estimulam sua proliferação. Buscam alianças. O ongueiro de hoje pode vir a ser o candidato de amanhã. Para entender a legitimidade da representatividade das ONGs é importante entendermos o conceito de democracia concomitante. O que não é difícil. Vejam só. Conhecemos a democracia dos cidadãos que se reuniam na praça e decidiam como governar as cidades. Essa era a democracia direta. As cidades cresceram muito, e sua administração se tornou complexa. Criou-se a democracia representativa. Políticos eleitos administram a cidade, a prefeitura, o estado e o país em nome dos cidadãos. As ONGs não estão presentes em nenhum desses dois tipos de democracia, mas num terceiro. A democracia participativa nasce, está nascendo, aliás, como fórmula política intermediária entre a democracia direta e a representativa. Nela os cidadãos buscam também concretizar o ideal de participar da gestão pública. Só que nem direta nem apenas eleitoralmente. Por um lado, a sociedade civil se organiza; por outro, a administração pública se abre por intermédio de inúmeros conselhos, audiências públicas, parcerias, consultas técnicas e por aí vamos. Os diferentes conselhos da administração pública, de que participam inúmeros organismos da sociedade civil e cidadãos - empresários, trabalhadores, consumidores ou moradores -, nada mais são do que a prática da democracia participativa. Não advém do voto a legitimidade das ONGs, das múltiplas associações, confederações, entidades e cidadãos que participam delas. Advém de seu compromisso com a causa pública. Advém da representatividade de seu objeto, de sua ação, de sua proposta, do caráter público nem lucrativo, nem, sobretudo corporativo, de sua finalidade. Não é o voto que legitima uma ONG de direitos humanos ou de defesa do meio ambiente. É a crescente adesão popular a ambos os temas. Qual desse três modelos é praticado no Brasil de hoje? A Constituição é clara: os três. Quando a Constituição prevê plebiscitos e referendos, adota a democracia direta. Quando prevê partidos e eleições, adota a democracia representativa. Quando estimula e cria conselhos, e leis como o Estatuto das Cidades, adota a democracia participativa. Ou seja, os modelos de democracia nem são seqüenciais e excedentes, mas complementares e concomitantes. O ideal político moderno aponta para uma democracia concomitante. Como toda busca de um ideal, trata-se de trajetória sujeita a percalços e vicissitudes. Como os partidos e os políticos, às vezes sucumbe-se a outros interesses. Às vezes radicaliza-se, às vezes são manipulados ou cooptados. Infelizmente é a trajetória humana. Mas dificilmente o Brasil teria avançado como avançou no combate à Aids, sem as ONGs, com o governo sozinho. Dificilmente teríamos a democracia representativa que temos, apenas com os partidos políticos, sem as ONGs de direitos humanos. Dificilmente combateremos a poluição e destruição do meio ambiente sem elas. O importante é o país unir esforços para fazer convergir a democracia direta, a democracia representativa e a democracia participativa. Coibindo excessos e desvios em qualquer dos três modelos, mas estimulando e apoiando os três. Há espaço para todos. *JOAQUIM FALCÃO, MESTRE EM DIREITO POR HARVARD, É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO.
CORREIO BRAZILIENSEBRASÍLIA, 19 DE JULHO DE 2001. |