MENINOS DE RUA - RACHEL DE QUEIROZ

Correio Braziliense

 

Brasília, sábado,

29 de dezembro de 2001

Meninos de rua

As estatísticas mostradas pelos governos, que dizem estar melhorando a situação da juventude no país, não me servem de consolo ao ver um caso real de abandono ou exploração de uma criança.

Rachel de Queiroz

Perdoem-me por insistir no assunto: mas é que nunca pensei que chegaríamos ao ano 2002 sem ter ao menos um projeto de solução para o problema. Problema crucial para um país que se diz civilizado e que nos afasta cada vez mais do Primeiro Mundo. Sei que crianças soltas nas ruas existem em todo o Brasil, mas quero falar especificamente no Rio, pois falo no que vejo com meus próprios olhos.

Nas poucas vezes em que saio de carro tenho reparado que, em quase todas as esquinas de maior fluxo de veículos, há sempre um grupo de meninos e meninas vendendo balas ou pedindo esmolas.

Dizem as estatísticas que o número de crianças sem escola vem caindo no país, mas não é o que um olhar impressionista sobre as ruas do Rio nos faz acreditar. Talvez algumas até estudem e mantenham seus vínculos com a família. Outras já devem ter na rua a sua morada definitiva e seu círculo de afinidades são os capitães de areia.

As estratégias são muitas, variadas e criativas. Há algum tempo começaram a aparecer nos sinais de trânsito jovens fantasiados, provavelmente estudantes de escola de circo, fazendo rápidas performances circenses enquanto dura o sinal fechado. Os meninos pobres, vendo aquela concorrência, apressaram-se em aprender um malabarismo com bolas de tênis (como já contei aqui em outro artigo) e a incorporaram ao seu dia-a-dia, alguns com extrema habilidade. No bairro do Jardim Botânico há uma menina que vende chicletes no mesmo sinal, já há vários anos. Meu neto me contou que certa vez a viu chegar para trabalhar, descendo de um ônibus, muito arrumadinha, e até de relógio. Ela então troca de roupa, veste uma camiseta e um short rotos, e inicia seu dia de sinal.   Muitos, mal ainda falando, são adestrados para esmolar, tendo à sua espera uma mãe miserável, a poucos metros dali, com outros ainda menores no colo. Disputam os sinais e a piedade da classe média, com desempregados, inválidos e outros desgarrados da sociedade. O seu mundo de criança dissolvido na busca da sobrevivência por vezes emerge, quando se esquecem da atribuição de pedir, para observar algum objeto interessante ou alguma situação inusitada dentro de um automóvel. Às vezes nos esquecemos de que são crianças, parecem ser apenas ameaças à nossa viagem tranqüila, coisa cada vez mais rara em cidades tão violentas.

A classe média motorizada, cansada de ter o coração partido a cada sinal, ao topar com uma criança da mesma idade do filho que vai no banco de trás, protegido, alimentado e educado, fecha o coração e olha firme para o sinal, querendo que a luz verde apareça logo para desfazer o seu constrangimento.

As estatísticas mostradas pelos governos, que dizem estar melhorando a situação da juventude no país, não me servem de consolo ao ver um caso real de abandono ou exploração de uma criança. A alegria que tenho ao ver o meu bisneto crescendo forte e bonito se esvai ao ver um menino, com os mesmos três anos que ele, se esquivando nos sinais, distraído que foi, ao calcular errado o tempo do sinal e deixar a luz verde apanhá-lo ainda por entre os carros impacientes.

Rachel de Queiroz, da Academia Brasileira de Letras, é escritora

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