BEIT SAHOUR - ROSELI FISCHMANN

Correio Braziliense

 

Brasília, segunda-feira,

24 de dezembro de 2001  

Beit Sahour

É preciso cessar toda violência, manter a serenidade e garantir o direito à vida, dialogar, construir nas mentes de israelenses e palestinos o direito fundamental, de cada um, à existência.

Por Roseli Fischmann

Os cristãos, de diferentes denominações, estão em festa a partir da noite de hoje, relembrando o fato que marcou a era comum vivida há cerca de 2.002 anos: o Natal. Cristãos ou não, todos sabem a história do nenê que, ao nascer, foi colocado numa manjedoura, o bafo da modéstia de dois animais, o
burro e a vaca, a aquecê-lo do frio intenso, numa noite de Belém. É certo que o estudo de religiões encanta-me e ocupa meu tempo há muito, como necessidade interior, sendo feito, também, nos últimos quinze anos, como parte das atividades de pesquisa. Contudo, foi caminhando na noite gélida de Paris, na semana que passou, que aprendi do amigo Munir que Beit Sahour, segundo a tradição cristã, é o lugar onde um anjo apareceu para pastores que cuidavam do rebanho, para anunciar o nascimento de Jesus. Munir é palestino, cristão da linha ortodoxa grega, professor em uma escola em Beit Sahour, onde vive com a família. Integrou um grupo misto de professores israelenses e palestinos que participou de um seminário-oficina sobre direitos humanos das crianças, promovido pela associação de que participam em Israel e nos Territórios Palestinos, denominada Meca - Middle East Children Association.

Contra toda lógica, contra toda expectativa, 25 pessoas reunidas em Paris, trabalhando pela paz, nos tempos terríveis que, do Brasil, apenas assistimos, com maior ou menor grau de empatia. Adina Shapira, uma jovem advogada judia, israelense, é o motor do trabalho, com Ghassan Abdullah, muçulmano, palestino, professor universitário nas áreas de Psicologia e Educação. As dificuldades práticas vividas no Oriente Médio tornam difícil o encontro ali, fazendo com que os dois co-coordenadores, corajosos, se envolvam na busca de financiamentos e doações para levarem os professores e o trabalho em prol da paz em espaços tranqüilos, onde possam conversar e partilhar trabalhos, refeições, caminhadas, reflexões.

No encontro em Paris, estavam 24 educadores, 12 israelenses e 12 palestinos, que me deram a honra do convite para partilhar as atividades do seminário. Adina e Ghassan conseguiram encontrar os professores decididos a deixar as famílias e as casas, em época especial: para os judeus, fim de Chanukah; para os muçulmanos, fim de Ramadã; para os cristãos, vésperas de Natal. A confirmação da autorização para que os professores palestinos pudessem sair de Israel chegou apenas no último minuto, demonstrando a inegável aceitação do trabalho, por parte do governo israelense, e a importância do apelo de Arafat a que cessasse toda violência.

Volto a Beit Sahour. A história do anjo anônimo chamou-me a atenção. Há arcanjos famosos, como Gabriel, partilhado pelas três religiões abrahâmicas, figura importante em todas. Mas o anjo mensageiro de Beit Sahour transformou-se em símbolo da cidade que, zelosa, cuida da vizinha Belém, Bethlehem, que recebeu o ilustre hóspede e preocupa-se que a cidade está com dificuldades, pouco pode enfeitar-se, que muitos passam fome. Os professores em Paris, israelenses e palestinos, fizeram o papel do anjo, dizendo ao mundo que há perspectivas de paz. Deles muito me orgulho. Corajosos, como educadores sabem ser, estavam presentes num momento em que o mundo olha atônito o Oriente Médio e pergunta se haveria o que fazer. Educadores respondem fazendo.

Ouvi a história de Myriam, professora em uma escola para portadores de necessidades especiais. Contou-me como, pela imposição da exclusão social a que portadores de deficiências estão sujeitos em toda parte, acaba vivendo no cotidiano escolar a convivência de judeus, cristãos, muçulmanos - a ação efetiva de proteger os direitos é mais forte que discursos, e a cooperação é feita na prática.

Ouvi a história de Naiz, jovem palestino, vive em Ramallah. Tem interesse pelo Brasil, mas queria aproveitar cada minuto para conquistar a cooperação para seu povo, como Munir. Senti-me à vontade para, parceira de trabalho, indagar, em especial a Munir, sobre o que fazem em relação a terroristas (embora fosse claro que todos soubessem, repetiam muitas vezes ''não somos terroristas'', o peso do estereótipo a pesar), como lidam com a disponibilidade dos que se propõem a ser homens-bomba, gente que nega o mais básico direito à vida, inclusive o da própria vida. Do que pude entender, já é bastante que os terroristas entendam que os professores, que cooperam em prol da paz, são também patriotas, não os hostilizando. Testemunhei a solidariedade dos professores israelenses, acolhendo as histórias narradas pelos colegas palestinos. Vi Hannan, professora de origem árabe, cidadã israelense, fazendo todos os dias o árduo trabalho de tradução, pois cada um falava sua própria língua natal, o hebraico e o árabe, o inglês servindo como língua comum para os debates que pediam compreensão imediata.  Lembrei-me de Saint-Exupèry, no belíssimo Terra dos Homens, narrando a epopéia do colega Guillaumet, que, no início do correio aéreo, ficara perdido nos Andes após a queda do avião. Enquanto caminhava, propunha a si, repetidamente: ''O que salva é dar um passo, mais um passo, é sempre com o
mesmo passo que se recomeça''. Salvou-se, porque caminhou em direção correta, no caminho encontrou ajuda. No Oriente Médio, Ghassan e Adina, com os professores, caminham passo a passo. Nós, que vivemos em terras mais amenas, temos que ir ao encontro, somos também responsáveis pela porção da humanidade que luta, ali, com dignidade.

Encontro no jornal Folha de S. Paulo de 21 de dezembro o cônsul-geral de Israel, Medad Medina, reafirmando o reconhecimento da decisão da ONU, de 1948, da criação de um Estado Árabe, hoje expressa no direito à existência de um Estado Palestino. Ao mesmo tempo, reafirma o direito básico da existência do Estado de Israel, presente na mesma decisão da ONU - existência para viver em paz, sem ameaças, como a de ser ''lançado ao mar'', como houve em 1967, por parte de três países árabes. É preciso cessar toda violência, manter a serenidade e garantir o direito à vida, dialogar, construir nas mentes de israelenses e palestinos o direito fundamental, de cada um, à existência - livres e em paz. Temos, mesmo a distância, o que fazer, no apoio ao diálogo e à cooperação, pois o que está em risco é a humanidade.

Uma fonte cristã ensinou-me um pouco mais, está no Evangelho de Lucas: depois do anjo-mensageiro, legiões de anjos apareceram em Beit Sahour. Seu canto vale para todos os seres humanos que almejam um futuro melhor: ''Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade''.
Feliz Natal a todos que o celebram, que haja serenidade no Oriente Médio e que venha a paz para toda a humanidade.

Roseli Fischmann é professora de pós-graduação na USP e na Universidade Presbiteriana Mackenzie, coordenadora do Instituto Plural e presidente do Júri Internacional do Prêmio Unesco de Educação para a Paz

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