Dia Mundial da Paz e Educação Correio Braziliense Brasília, segunda-feira, 31 de dezembro de 2001 Opinião Dia Mundial da Paz e Educação Os tempos não são de entusiasmo e de festa, mas que seja bem-vindo o ano de 2002, como possibilidade de recomeço, os muitos bons exemplos espalhados pelo mundo a servir de inspiração Por Roseli Fischmann Vivemos a época do ano em que se desejam ''boas festas'', em que se fazem balanços, prognósticos. Compromissos são tomados consigo próprio e com outros. As ''resoluções de ano novo'' são célebres em qualquer língua, nos países de tradição ocidental, onde a era comum é confundida com ''era única''. De maneira geral, é uma época de expectativa e esperança. É difícil escapar à sina e, assim, o balanço de 2001 é, provavelmente, o mais pesado dos anos recentes. Depois das expectativas em torno do primeiro ano do novo milênio da era comum, o que ocorreu trouxe um gosto estranho, de perda de referências, de expectativas, de esperanças. De fato, o sentimento de perda esteve presente nos ambientes em que se cultiva, minimamente que seja, a reflexão. O ano teve momentos fortes. Em nível internacional, o Oriente Médio viveu o recrudescimento do conflito armado; a Conferência contra Racismo, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância demonstrou a extensa e complexa pauta que ainda há no tema; a vizinha Argentina enfrenta crise econômica sem precedentes. No campo nacional, a crise de energia elétrica, com ameaças de apagão, expôs à luz do dia aspectos delicados da administração pública, assim como a capacidade do povo brasileiro de reagir positivamente e de forma madura a problema sério. Em compensação, a violência aumentou sensivelmente nas áreas urbanas, o crime organizado assumiu novos territórios, o sentido de reciprocidade parece estar cada vez mais corroído - trata-se do mesmo povo brasileiro. É evidente, contudo, que os acontecimentos de 11 de setembro, nos ataques terroristas aos Estados Unidos, assim como os subseqüentes, no Afeganistão, significaram um marco na história da humanidade que ainda está por ser compreendido, se houver dia em que o será. Por ocasião da entrega do Prêmio Unesco de Educação para Paz, tive uma reunião de trabalho com a professora universitária norte-americana Betty Reardon, que tem dedicado a vida à educação para a paz, sediada em Nova York, andando pelo mundo no trabalho que realiza. Narrava a difícil liberação do sentimento de irrealidade que ainda vivem os nova-iorquinos, as perdas vividas pela população - perdas individuais e coletivas - e, ao mesmo tempo, o difícil exercício da autocrítica num momento em que a vitimização tendia ao que por fim se realizou, a prática da revanche. Que esperança existiria, ainda, para construir a paz? Primeiro de janeiro, de fato, é celebrado como Dia Mundial da Paz, os budistas, por exemplo, têm especial apreço pela data. Hoje, viramos o calendário, deixando que se vá 2001, com um gosto de dúvida e medo. Os apuros do cotidiano, o cansaço e a possibilidade do feriado fazem com que todos procurem, pelo menos, um pouco de relaxamento, o descanso que propiciará a retomada da rotina e da vida, como exercício que se repete, sem saber onde estará a diplomação. Às vezes me perguntam para que precisaria buscar o que fazer ''lá fora'', se ''aqui dentro'' não existiriam problemas suficientes para enfrentar. A pergunta não é ociosa, sei que a tendência é de supor que ''cuidar da própria casa'' já é suficiente. Sucede que a ''própria casa'' é mais que a residência, o bairro, a cidade, o estado, o país em que vivemos. Houve tempo em que a humanidade vivia a ilusão de que havia o senhor das terras, soberano, e o servo, protegido e explorado. O caminhar da história tem mostrado a dificuldade de se viver encerrado em referenciais estreitos e limitados. Um ímpeto humano tem levado às buscas de expansão de territórios, que se fizeram por terra, por mar e, quando se conheceram os limites da face do planeta, a conquista foi buscada pelo ar e pelo espaço, em busca de planetas e estrelas distantes. Chegamos assim ao ponto em que uma estação espacial já é banalidade, embora o íntimo do ser humano possa permanecer, para sempre, terra por conquistar. Aí atua a educação, daí seu encanto radical. Educadores, somos quem visita o território maravilhoso do espírito humano, em busca do encontro de corações e mentes, no desafio da alteridade e da transformação, construção mútua e singular, que ao ser humano é dado viver. Inseridos numa realidade que se faz de política, sonhos e interesses - os nobres e os nem tanto -, nós educadores somos investigadores por profissão e necessidade. Os tempos que se vivem são de cautela, o mundo e a sociedade mostram-se incertos, a ambigüidade está presente em toda parte, tanto se ataca a violência quanto se a pratica, a dignidade tem sido posta em questão, a toda hora. Por que trabalhar questões internacionais se aqui, no Brasil, temos tanto a fazer? De fato, o muito a fazer, para nós, educadores, espalha-se pela face da Terra. A dignidade humana, em risco, é a mesma, assim como o direito à vida, o mais universal e fundamental de todos os direitos. É, pois, urgente recuperar o valor da vida, quando se vê o suicídio como arma terrorista, alimentado por fundamentalismos de todo tipo, lá fora, que se pregam em nome supostamente de Deus; ou em que uma criança ou adolescente se presta a ser ''avião'' do tráfico, aqui dentro, porque o dinheiro que vem é mais efetivo que a lenta ação social e política do Estado e da sociedade. É a vida e a dignidade humana que estão em risco por toda parte; a casa que dividimos, assim, é o planeta, não há como ficar encerrado nos limites que os mapas estabelecem, pelos quais se faz guerra e a morte se impõe contra a vida, que deveria preencher os espaços que se quer conquistar. Educadores precisamos ser todos, se quisermos pensar o futuro como possibilidade e a paz como destino. É preciso ressignificar, mesmo, a vida, quando o dinheiro perde o caráter instrumental para transformar-se em fim, forte o suficiente para estruturar a ordem mundial, contra todo o avanço da consciência humana, contra todas as conquistas espirituais e culturais que sabidamente são vividas. Dia Mundial da Paz, tempo de refletir e de cautela. Os tempos não são de entusiasmo e de festa, mas que seja bem vindo o ano de 2002, como possibilidade de recomeço, os muitos bons exemplos espalhados pelo mundo a servir de inspiração. Feliz ano-novo! Roseli Fischmann é professora de pós-graduação na USP e na Universidade Presbiteriana Mackenzie, coordenadora do Instituto Plural e presidente do Júri Internacional do Prêmio Unesco de Educação para a Paz © Copyright CorreioWeb Fale com a gente Publicidade |