Para que o brasileiro leia melhor

Correio Braziliense - Editorial

Brasília, domingo,

30 de dezembro de 2001

Para que o brasileiro leia melhor

A leitura nem sempre é procedimento fácil. Ela faz inúmeras solicitações simultâneas ao cérebro e é necessário desenvolver, consolidar e automatizar habilidades muito sofisticadas para pertencer ao mundo dos que lêem com naturalidade e rapidez.

Lucília Helena do Carmo Garcez

''Quem não sabe ler carrega a carta da morte''

Dadá e Corisco

Os debates atuais a respeito da leitura estimulam e exigem uma reflexão mais profunda, com base em tudo que já se sabe sobre o processo de ler e compreender. Os programas de democratização da leitura, oficiais ou não, devem intensificar qualitativamente sua atuação para fazer frente aos apelos imediatos de um mundo cada vez mais seduzido pela imagem, pela comunicação rápida, pela velocidade, e, ao mesmo tempo, devem ampliar quantitativamente os esforços para incluir parcelas cada vez maiores da população. Nesse percurso, muitas vezes descontínuo e cheio de obstáculos, qualquer iniciativa em direção ao estímulo à leitura deve envolver diversos agentes e diferentes segmentos sociais: famílias, escolas, professores, bibliotecários, especialistas, pesquisadores, editores, autores, meios de comunicação, instituições governamentais e não-governamentais. Se queremos socializar o direito à leitura, não apenas como correspondência entre sons e letras, mas como forma real de conhecimento, interpretação e compreensão do mundo e do ser humano, é imprescindível uma articulação contínua, intensa e harmoniosa entre esses atores.

Isso porque o desenvolvimento da leitura, já sabemos há muito tempo, depende de: convívio contínuo com histórias, livros e leitores, desde a primeira infância; valorização social da leitura pelo grupo social; disponibilidade de acervo de qualidade e adequado aos interesses, horizontes de desejo e aos diferentes estágios de leitura dos leitores; tempo para ler, sem interrupções; espaço físico agradável e estimulante; ambiente de segurança psicológica e de tolerância dos educadores em relação ao percurso individual de superação de dificuldades; oportunidades para expressar, registrar e compartilhar interpretações e emoções vividas nas experiências de leitura; acesso à orientação qualificada sobre por que ler, o que ler, como ler e quando ler.

Para aprofundar a reflexão relativa à natureza do ato de ler, é necessário considerar que se trata, simultaneamente, de uma experiência individual única e de uma experiência interpessoal profunda e intensa, um exercício dialógico ímpar, pois entre leitor e texto desencadeia-se um processo discursivo de decifração, interpretação, reflexão e reavaliação de conceitos absolutamente renovado a cada leitura.

Não podemos doar a nossa leitura, mas podemos compartilhar a consciência do direito de ler, porque, assim como a linguagem, os direitos são construções sociais, estabelecidos e conquistados em conjunto, no coração das lutas sociais. Como não se luta pelo que não se conhece, é necessário dar a conhecer as infinitas possibilidades da leitura. A experiência da linguagem, e a da leitura especialmente, não é solitária, é um produto construído na interação em que os participantes atuam de forma ativa. Ela exige procedimentos mentais complexos que são construídos pela mediação do outro: o pensamento abstrato, a memorização, a atenção voluntária, o comportamento intencional, as ações conscientemente controladas, a generalização, as associações, o planejamento, as comparações, ou seja, as funções superiores da mente que nos fazem humanos, como afirma Vygotsky.

Por ser assim tão complexa, a leitura nem sempre é um procedimento fácil. Ela faz inúmeras solicitações simultâneas ao cérebro e é necessário desenvolver, consolidar e automatizar habilidades muito sofisticadas para pertencer ao mundo dos que lêem com naturalidade e rapidez. Desde a decodificação de signos, interpretação de itens lexicais e gramaticais, agrupamento de palavras em blocos conceituais, identificação de palavras-chave, seleção e hierarquização de idéias, associação com informações anteriores, antecipação de informações, elaboração e reconsideração de hipóteses, construção de inferências, compreensão de pressupostos, controle de velocidade, focalização da atenção, avaliação do processo realizado, até a reorientação dos próprios procedimentos mentais para a compreensão efetiva e responsiva, há um longo e acidentado percurso.

Além disso, a leitura não se esgota no momento em que se lê, mas se expande por todo o processo de compreensão que antecede o texto, explora-lhe as possibilidades e prolonga-lhe o funcionamento para depois da leitura propriamente dita, invadindo a vida e o convívio com o outro. Como se vê, trata-se de uma atividade exigente, que vai na contramão dos apelos da nossa sociedade veloz.

As iniciativas práticas vão desde a formação de um acervo e a criação de oportunidades de leitura e de expressão das interpretações e emoções, até o acompanhamento dessas leituras. O educador pode atuar como um interlocutor privilegiado, um parceiro mais próximo, um companheiro de caminhada, mas não como doador, como o dono do significado, como o que detém a leitura correta, uma vez que cada indivíduo constrói a sua própria trajetória pessoal de leitura. Esse guia apenas estimula, orienta, apóia e facilita a superação dos obstáculos que, muitas vezes, desencorajam o leitor iniciante e podem desviá-lo para um ciclo de fracassos sucessivos que, certamente, virá a condená-lo à aridez do silêncio, da mudez, da ignorância. O verdadeiro educador não se improvisa; necessita de qualificação contínua e prolongada para enfrentar esse desafio.   Contribuir para a construção de leitores seguros, confiantes, competentes e autônomos é participar da democratização do acesso a um bem simbólico essencial, pois leitura e escrita são necessidades básicas, instrumentos imprescindíveis para o exercício da cidadania.

Lucília Helena do Carmo Garcez, escritora, é pesquisadora da UnB

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