Receitas de um pediatra

Correio Braziliense

Brasília, domingo,

30 de dezembro de 2001

Dr. Márcio Lisbôa

dr.lisboa@bol.com.br

O Natal das Torres Gêmeas

Sem dúvida, a cada ano a vida de Papai Noel se torna cada vez mais difícil e penosa. No país das pessoas consideradas amigas, solidárias, calmas, alegres, até algumas décadas atrás, a violência vem crescendo assustadoramente. Ninguém se arrisca a abrir a janela do carro para ajudar uma criança, a porta da casa para mitigar a fome de um mendigo, a dar caronas no carro para uma mulher que carrega uma criança. Infelizmente, as mensagens que nos são transmitidas pelas imprensa, pela televisão, e mesmo nossas vivências, estão nos tornando um bando de medrosos e insensíveis. O medo, ou até o pânico, estão nos afastando uns dos outros. Ate mesmo o Papai Noel, se batesse em nossa casa altas horas da noite, além de não ser recebido, poderia até ser atacado. não é bom para nós e para as crianças deixarmos de acreditar em Papai Noel e até passarmos a temê-lo. Mais do que todos nós, o bom velhinho deve sentir com os ventos mudaram para pior. E como mudaram!

Ninguém esquecerá o dia 11 de setembro de 2001. O mundo assistiu estupefato e horrorizado os atentados terroristas contra os Estados Unidos. Milhares de inocentes, inclusive árabes e muçulmanos, que nada tinham a ver, foram sacrificados. A opinião pública americana se revolta e exige uma reparação. Identificados os possíveis autores e o principal responsável pelos atentados, os americanos pediram a entrega dos mesmos que se encontravam no Afeganistão, governado pela milícia Talibã, odiada pelos habitantes do país. A opinião pública mundial se posicionou contra os talibãs (não contra os afegãos), e brancos, negros, amarelos, árabes, europeus, judeus, católicos e protestantes se uniram aos dissidentes afegãos e libertaram o pobre, sofrido e exaurido povo afegão da tirania talibã.

Como se constata pela imprensa escrita, falada e televisiva parece que a liberdade e a alegria estão voltando às ruas das cidades do Afeganistão. Nenhum ser humano consegue ser feliz sem saúde e liberdade. Ainda falta muito para que nossos irmãos do Afeganistão as consigam e agora cumpre ajudá-los. Como pediatra estranhei a falta de comentários sobre um dos pontos mais trágicos desses acontecimentos.

Milhares de crianças perderam seus pais nos atentados contra as Torres. Crianças foram definitivamente e irremediavelmente privadas do amor, do carinho e da segurança que recebiam deles. Será que as pessoas imaginam que significa a perda do pai e ainda mais da mãe, para uma criança pequena, no momento em que mais necessita deles para sua segurança, sua formação e sua educação? Foram contabilizadas as perdas humanas e materiais. O prejuízo foi estimado em muitos bilhões de dólares. E quanto valerá o sofrimento dessa criança e as conseqüências sobre o seu desenvolvimento mental e emocional? E a repercussão desses desaparecimentos sobre a situação social da família: privação de ordem material, impossibilidade de pagar estudos, pobreza e, o pior, a desestruturação familiar? Será que as pessoas conhecem as repercussões precoces sobre o comportamento das crianças que perdem repentinamente um progenir - o desespero, as frustrações, as regressões, o desânimo, a agressividade, o inconformismo, o medo, a angústia, o temor de perder o outro progenitor? Será que a sociedade está consciente das graves repercussões das falta da mãe - da privação materna - sobre o futuro mental e emocional da criança, principalmente sobre seu comportamento?

A perda de um progenitor é irreparável para a família e o seu preço é incalculável. Pode-se atenuar a falta de um dos pais, pode-se até tomar o lugar deles, mas substitui-lo nunca.

O insólito nessa triste história é que milhões de crianças afegãs devem, pelo menos em parte, sua liberdade, sua alegria, sua esperança e a possibilidade de voltarem a ser crianças - jogar bola, soltar pipas, ouvir músicas, dançar, vagar pelas ruas - aos atentados contra as Torres Gêmeas, que levaram à orfandade milhares de crianças americanas. Se eles não tivessem existido, ninguém teria pensado nas pobres crianças do Afeganistão.

Como dizia minha mãe: ''Meu filho, não existe nada totalmente ruim; existe sempre um lado bom em todos os acontecimentos''.

Que Deus, ou Alá, proteja as crianças de todo mundo, é o meu pedido para Papai Noel, nesse Natal de 2001.

Cartas para o dr. Márcio Lisbôa devem ser enviadas para Correio Braziliense - Redação - SIG Quadra 2, Lote 340, Brasília, DF. CEP: 70.610-901 com apenas um assunto. É preciso mandar nome, endereço e telefone para contato.

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