Salvo dos escombros

Correio Braziliense

Brasília, domingo,

30 de dezembro de 2001

Imprensa

Cobertura

Salvo dos escombros

A carga emocional de um fato, como os atentados de 11 de setembro, tende a contaminar a sobriedade e o apuro jornalístico. Os EUA ainda sofrem na hora da isenção.

Pedro Luiz Rodrigues

Manter graus razoáveis de isenção e imparcialidade na cobertura dos desdobramentos relacionados aos atentados terroristas de 11 de setembro tem representado desafio não trivial para a imprensa escrita norte-americana. Desafio que os grandes jornais - os que integram o selo clube dos formadores de opinião (entre os quais The New York Times, Washington Post, The Christian Science Monitor e Los Angeles Times) - estão, em meu entender, enfrentando satisfatoriamente. Não apenas têm sido capazes oferecer a seus leitores informações bem apuradas, amplas e diversificadas, como também têm buscado pautar sua reflexão por critérios notavelmente equilibrados para as circunstâncias.

Não é tarefa fácil para a imprensa de qualquer país lidar com temas que provoquem reações ardentes na opinião pública. Aqui mesmo no Brasil tivemos alguns episódios recentes, como a crise da ''vaca-louca'', com o Canadá, ou os questionamentos sobre a conveniência de participar da negociação da Alca, que demonstraram o quanto é difícil para os meios de comunicação ''desemocionalizar'' a cobertura de assuntos que provocam reações mais ou menos acentuadas na sociedade.

A verdade, portanto, parece ser a de que as virtudes do equilíbrio e do bom-senso não são fáceis de ser exibidas em momentos de grave tensão ou de dor, quando as reações do público são regidas pela emoção. Sabe bem quem se dedica à comunicação no âmbito governamental que a reflexão moderada não costuma ser bem recebida quando o que predomina são impulsos de retaliação e
vingança.

Nos Estados Unidos, a brutalidade dos ataques feriu profundamente a alma da nação, despertando em significativa parcela da opinião pública americana impulsos de natureza retaliatória, de vingança mesmo. Sondagens recentes indicam por exemplo que seis em cada dez americanos apóiam a constituição de tribunais militares para julgar terroristas, tribunais em que os direitos dos réus serão consideravelmente diminuídos vis-à-vis os tribunais regulares.

Diante desse estado de ânimo, deve-se valorizar ainda mais o comportamento da imprensa americana. Desde o primeiro momento, os principais jornais daquele país adotaram posição firme e coerente (com pequenas nuanças diferenciadoras entre si) no sentido de desestimular excessos. Tiveram, por exemplo, papel crucial para refrear os ímpetos de uma reação que poderia ter se alastrado contra a comunidade de origem árabe residente nos Estados Unidos. A percepção de que se encaminhava para um ''choque de civilizações'', à Huntington, foi devidamente desmontada por uma série de editoriais que cuidadosamente lembraram que o foco da questão era o combate ao terror e não o repúdio, injustificado, a esta ou àquela etnia. No dia 16 de setembro, o Washington Post abria espaço ao ex-senador por Nova York (e ex-embaixador dos EUA na Índia) Daniel Patrick Moynihan, que, em artigo firme, lembrou o caráter multiétnico da sociedade americana, que inclui ''uma vibrante comunidade de imigrantes islâmicos de várias partes do mundo''.

Em 12 de setembro, dia seguinte ao atentado, o editorial do New York Times conclamava os americanos a ''rethink how to safeguard the country without bartering away the rights and privileges of the free society that we are defending'' (''repensar como proteger o país sem abrir mão dos direitos e privilégios da sociedade livre que estamos defendendo''). Alertava o jornal, ainda, contra a tentação - ''que será grande nos dias à frente'' - de produzir novas leis draconianas que dêem às forças policiais, ou mesmo às militares, o direito de minar as liberdades civis que formam o caráter dos Estados Unidos.

Não tenho a pretensão de fazer, neste curto espaço, um levantamento estatístico e analítico minucioso do comportamento da imprensa escrita norte-americana nesses pouco mais de três meses que nos separam dos atentados em Nova York e Washington. Mas, como leitor diário dos jornais que mencionei acima, tenho de tirar o chapéu em reconhecimento ao bom trabalho que vêm fazendo. Apesar do momento difícil que se vive nos Estados Unidos, a grande imprensa apregoa as virtudes da democracia e da liberdade, inclusive a da própria imprensa, ajudando a reconstruir a confiança da sociedade americana nas qualidades de seu sistema político.

Pedro Luiz Rodrigues é diplomata e jornalista (artigo publicado no jornal da
Associação Nacional de Jornais - ANJ)

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