Consciência nova

Correio Braziliense

Brasília, quarta-feira,

02 de janeiro de 2002

Consciência nova

Nosso maior presente para nossas crianças não vai chegar em casa, vai estar na definição correta do uso do dinheiro público para fazer um Brasil onde toda criança terá uma escola de qualidade.

Por Cristovam Buarque

Devo a Papai Noel um importante presente, recebido décadas atrás, em Recife. Nasci e cresci, até casar e sair do Brasil, em uma pequena casa no número 117, da Rua Doze de Outubro, no bairro dos Aflitos. Minha casa era rodeada por algumas bem maiores, de classe média alta, e outras bem menores,
casebres de famílias pobres. Meu melhor amigo morava em um desses mocambos de taipa. Seu nome era Miro, morreu ao redor dos 20 anos, de asma.

O melhor presente que recebi de Papai Noel foi a percepção da injustiça: por que eu e meus irmãos recebíamos presentes de Natal, mas nem Miro nem seus irmãos recebiam? Não lembro com que idade percebi aquela injustiça, mas lembro perfeitamente de conversas sobre isso com minha mãe e meu pai.

Apesar de serem trabalhadores de baixa renda, ela tecelã e ele comerciário, meus pais nunca deixaram de me dar presentes no Natal. Papai Noel sempre foi generoso comigo. Mas seu maior presente não foi deliberado, foi conseqüência de seu aparente desprezo pelos pobres.

Não fosse a injustiça como Papai Noel dava melhores e mais caros presentes para os ricos e abandonava os nossos vizinhos pobres, é possível que eu terminasse conseguindo um dia despertar para a injusta realidade social do mundo. Mas seria mais difícil e talvez muito tarde. Mais difícil, porque, passada uma certa idade, ninguém muda seus sentimentos sociais, e tarde, porque, ainda que mudasse, já não haveria tempo para a aventura de querer mudar o mundo, fazê-lo mais justo.

Hoje, os meninos e meninas do Brasil, de classe média e alta, têm dificuldade em receber esse presente de Noel, porque vivem isolados, separados da população pobre. Quando acordam, no dia 25, brincam com seus amigos de mesma renda, não sentem, como eu, no Recife dos anos 50, a injustiça na generosidade do Papai Noel. E perdem a chance de receber seu melhor presente, melhor do que uma bicicleta que ganhei uma vez: o despertar da consciência para a realidade do mundo.

Por isso, precisamos ajudar Papai Noel. Seus presentes diferenciados não darão mais a consciência da injustiça social às crianças e aos jovens. Não podemos jogar sobre o simpático velhinho a responsabilidade de ser o elemento de consciência de nossos jovens. Cabe a nós, adultos, mostrarmos a nossas crianças e nossos jovens a injustiça construída ao longo de cinco séculos no Brasil. A injustiça de um mundo onde Papai Noel não tem o endereço de todos, nem tempo para todos.

Cabe a nós alertar nossas crianças e jovens para os riscos de crescerem em um mundo tão desigual, onde a violência passa a ser uma resposta de muitos, onde a tristeza passa a ser a companheira de outros.

E, finalmente, cabe a nós criar a esperança de que é possível um Brasil diferente. Um Brasil onde Papai Noel continuará trazendo presentes diferenciados, mais caros para os ricos, mais simples para os pobres, mas ninguém ficará sem um brinquedo no Natal. E ensinarmos que o caminho para isso está na educação de todas as crianças de hoje, para que elas, quando adultas, tenham condições de ajudar Papai Noel a conhecer o endereço de suas casas e chegar até seus filhos.

Nosso maior presente para nossas crianças não vai chegar em casa, não vem por chaminé, chegará pelo governo e pelo Parlamento, vai estar na definição correta do uso do dinheiro público para fazer um Brasil onde toda criança terá uma escola de qualidade. Com isso, lhes será possível ajudar Papai Noel a dar bom presente de Natal a seus filhos, no futuro.

Nosso melhor presente de Papai Noel para uma criança do mundo de hoje é fazê-la saber que teremos um feliz Natal para todos nós, ou não haverá Natal bom para nenhum de nós; que teremos um Papai Noel justo para todos nós ou não será suficientemente bom o presente que ele traz para apenas alguns.

Cristovam Buarque é professor da UnB e autor do livro O Tesouro na Rua

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