Justiça, paz e perdão

Correio Braziliense

Brasília, sábado,

05 de janeiro de 2002

Justiça, paz e perdão

O perdão é primeiramente uma decisão pessoal, uma opção do coração em relação aos outros. Mas, porque a pessoa tem uma dimensão social, o perdão se torna necessário ao nível social

Dom José Freire Falcão

O tema do Dia Mundial da Paz, celebrado no primeiro dia do ano-novo - não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão -, teve como pano de fundo os dramáticos acontecimentos de 11 de setembro de 2001.

Malgrado o medo que se apoderou da humanidade e das nuvens escuras que pairam sobre o mundo, João Paulo II nos trouxe uma mensagem de esperança, ''baseada na convicção de que o mal, o mysterium iniquitatis, não tem a última palavra nas vicissitudes humanas''. Pois, sobre a história humana vela a solicitude misericordiosa da providência divina.

Numa hora em que as forças do mal parecem triunfar, é possível conjugar a justiça e o perdão como pilares da verdadeira paz?

Sim. Porque o perdão se opõe ao rancor e à vingança, mas não à justiça. E a paz é fruto da justiça. Como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, é completada pelo perdão, ''que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas'' (João Paulo II). E insiste: ''Não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão: não me cansarei de repetir essa advertência a todos os que, por uma razão ou outra, cultivam dentro de si ódio, desejo de vingança, propósitos de destruição''.

Em sua mensagem, João Paulo II consagra largo espaço ''ao novo nível de violência, introduzido pelo terrorismo''. E com vigor afirma que o terrorismo nasce do ódio e se baseia no desprezo pela vida humana. ''Precisamente por isso, dá origem não só a crimes intoleráveis, mas constitui em si, enquanto recorre ao terror como estratégia política e econômica, um verdadeiro crime contra a humanidade'' (João Paulo II).

Acentua o papa que há um direito de defender-se contra o terrorismo. ''Direito que deve, como qualquer outro, obedecer a regras morais e jurídicas na escolha quer dos objetivos, quer dos meios.''

Nota que as injustiças sociais jamais podem ser invocadas para justificar os atentados terroristas, embora seja mais fácil recrutar terroristas ''em contextos sociais onde os direitos são espezinhados e as injustiças longamente toleradas''.

Na verdade, a verdadeira origem do terrorismo está no fundamentalismo fanático, ''que nasce da convicção de poder impor a todos a aceitação da sua própria visão da verdade. Mas a verdade jamais pode ser imposta, mas proposta'' (João Paulo II). Daí que ''nenhum responsável das religiões pode ser indulgente com o terrorismo e, muito menos, pregá-lo''.

Nesse contexto trágico do terrorismo, se põe o questionamento: o que significa concretamente perdoar? E perdoar por quê?

O papa fala de uma ética e de uma cultura do perdão como condição de uma política do perdão, ''expressa em comportamentos sociais e instrumentos jurídicos''.

O perdão é primeiramente uma decisão pessoal, uma opção do coração em relação aos outros. Mas, porque a pessoa tem uma dimensão social, o perdão se torna necessário ao nível social. ''As famílias, os grupos, os Estados, a própria comunidade internacional necessitam de abrir-se ao perdão.'' Até mesmo ''a capacidade de perdão está na base de cada projeto de uma sociedade futura mais justa e solidária'' (João Paulo II).

''À primeira vista, o perdão poderia parecer uma fraqueza, mas não: tanto para ser concedido quanto para ser aceito, supõe uma força espiritual e uma coragem moral a toda prova'' (João Paulo II).

Ao insistir sobre a necessidade do perdão, o papa tem diante dos olhos a situação da Terra Santa, dilacerada por ódios profundos e sacrifício de inúmeras vidas humanas.

A mensagem pontifícia é um apelo para que os líderes das confissões cristãs e das grandes religiões da humanidade colaborem na eliminação das causas sociais e culturais do terrorismo. E se coloquem ao serviço da paz entre os povos.

Conclama os líderes das três grandes religiões monoteístas - judaísmo, cristianismo e islamismo - a condenarem o terrorismo. E a testemunharem que o assassinato deliberado de inocentes é sempre um pecado grave. Assim fazendo, elas estão conduzindo os povos à estrada do perdão.

É tendo em vista esse papel das religiões na construção da paz que João Paulo II convidou os representantes das grandes religiões do mundo, especialmente os cristãos e os muçulmanos, para um encontro de prece em Assis, no próximo dia 24, quando rezarão para a promoção de uma autêntica paz. Pois ''a religião não deve jamais tornar-se motivo de ódio e violência''.

Dom José Freire Falcão é cardeal-arcebispo de Brasília

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