A missão soberana de investigar

Correio Braziliense

Brasília, sexta-feira,

04 de janeiro de 2002

A missão soberana de investigar

Para o povo quem falha é o Estado, incapaz de punir os que se beneficiam indevidamente dele.

Carlos Wilson

A comoção provocada pelo relatório do senador Geraldo Althoff (PFL-SC), relator da CPI do Futebol no Senado Federal, deveria transcender a singela e já conhecida constatação de que as coisas não vão muito bem no meio dos dirigentes do mais popular esporte nacional.

É importante esclarecer que os senadores dessa CPI, presidida pelo senador Álvaro Dias (PDT-PR), trabalharam durante 14 meses. Ouviram dezenas de depoimentos e examinaram milhares de páginas de documentos. O trabalho de investigação é extenuante e sobre-humano. Além disso, não se trata da soberana arte subjetiva da política. Os fatos falam por si. Os senadores agem unicamente premidos pelas suas consciências.

Foi assim nas duas comissões de que participei. Na primeira, como presidente da comissão especial que investigou as obras inacabadas, viajei com outros senadores por todo o país. Conferimos, uma por uma, as denúncias que nos chegaram. A nossa conclusão foi de que mais de duas mil obras, a maioria delas fundamentais para o desenvolvimento de pequenas e carentes comunidades, encontravam-se perdidas em um limbo. Recursos do Orçamento eram repassados por décadas, mas os cronogramas estavam irremediavelmente estagnados.

Lamentavelmente, apesar da denúncia corrosiva contida no relatório da
comissão, a chaga das obras inacabadas ainda prospera no Brasil. Principalmente no Nordeste, onde ações do governo que permitiriam o abrandamento da inclemência das secas seguem paradas, a maioria bloqueada pelo Tribunal de Contas da União, por apresentar irregularidades na destinação dos recursos ou na consecução dos objetivos.

Na CPI do Judiciário, funcionei como vice-presidente. Recebemos mais de três mil denúncias. No relatório do senador Paulo Souto (PFL-BA), ficou bastante claro o envolvimento do então senador Luiz Estevão (PMDB-DF), que por conta disso perdeu o seu mandato, e do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, no desvio de recursos da construção do fórum trabalhista da cidade de São Paulo. O magistrado aposentado segue preso e processado pela Justiça.

Mas o relatório não se limitava a essas denúncias. Um juiz da cidade de Jundiaí, no interior de São Paulo, Luiz Beethoven Giffone, foi denunciado cabalmente por favorecer a adoção de crianças, à revelia das mães, por casais estrangeiros. Difícil imaginar um crime mais hediondo do que esse. Um outro magistrado, de Brasília, Vasquez Cruxen, atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral, foi acusado de ter concorrido para dilapidar a herança de um menor. Ambos seguem em suas carreiras, protegidos por um impressionante espírito de corpo. E ainda processam jornalistas e empresas jornalísticas pela divulgação que deram à CPI.

Na rumorosa CPI que investigou favorecimentos ao sistema bancário e
financeiro, presidida pelo senador Bello Parga (PFL-MA) e relatada pelo senador João Alberto (PMDB-MA) ficou patente o concurso do ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes, e de outros funcionários daquela instituição, em operação que redundava em um milionário prejuízo para os cofres públicos e lucros abusivos para os bancos Marka e FonteCindam. O banqueiro, o italiano Salvatore Cacciola, é o único com prisão decretada e continua vivendo na Itália, protegido por sua nacionalidade. Quanto aos demais envolvidos, ou seguem suas carreiras sem ser molestados, ou se abrigam em estranhas decisões judiciais que lhes garantem a impunidade.

É importante que fique claro que os senadores, em particular, e o Senado Federal como instituição, cumpriram com o papel. A delegação que receberam constitucionalmente se limita a apurar e investigar. Não têm, e nem querem ter, poder de polícia. Muito menos exercer funções que competem aos
magistrados do Judiciário ou aos agentes do Ministério Público.

Ainda que seja forçoso reconhecer que o Ministério Público trabalhe em condições precárias, principalmente quando se considera o volume de denúncias em todos os níveis da administração, também não se pode falar em promiscuidade entre os poderes. As investigações produzidas pelas CPIs do Senado funcionam como combustível para o trabalho dos procuradores. Contudo, entre a constatação perpetrada pelos senadores e a denúncia ao Judiciário, há sempre um caminho tortuoso demais que, estranhamente, faz perder boa parte da essência da missão fiscalizadora de ambas as instituições.

Urge que esse caminho tenha um percurso mais sereno. Que a ação entre o Legislativo, o Ministério Público e o Judiciário seja integrada, efetiva e
pronta. Qualquer outro resultado que não seja o processo judicial dos denunciados representa um desgaste enorme junto à população. Encontrar o elo onde se quebrou a corrente é atribuição de analistas abalizados. Para o povo, de uma maneira geral, quem falha é o Estado, incapaz de punir os que se beneficiam indevidamente dele.

Carlos Wilson é senador pelo PTB-PE

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