Papel de polícia

Correio Braziliense

Brasília, domingo,

06 de janeiro de 2002

(Imprensa)

(Denúncia)

Papel de polícia

A imprensa brasileira está nas mãos de organismos repressores quando a violência que afeta crianças e adolescentes se torna objeto de cobertura jornalística.

Veet Vivarta

A notícia - apresentada semana passada no 2º Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, em Yokohama, Japão - é ruim para a imprensa e pior ainda para a sociedade brasileira, que deveria ter na mídia importante aliada. É ruim para a imprensa porque evidencia a prática de um jornalismo onde o aspecto investigativo cede lugar a mera reprodução dos boletins de ocorrência das delegacias. Pior para a sociedade porque esse tipo de cobertura não trata a violência como fenômeno social, mas como
casos.

Nos últimos cinco anos, a presença do tema ''violência'' cresceu nada menos que 1300% nos 50 maiores jornais do país, segundo dados monitorados pela Andi - Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Tal volume se evidencia (e preocupa) ainda mais porque são raras as reportagens que buscam tornar plural a visão sobre o fenômeno, discutindo suas causas, possíveis soluções e as políticas públicas implementadas (ou não) para combatê-lo.

Pesquisas da Andi revelam números impactantes, em especial se levarmos em conta que nos últimos anos os jornais vêm demonstrando crescente maturidade em relação à cobertura de diversos outros temas, muitos deles tão ''áridos'' quanto a questão da violência e da criminalidade. A primeira pesquisa, com foco em reportagens sobre delitos tais como roubos, furtos, homicídios e latrocínios - sempre quando envolve crianças e adolescentes no papel de vítima ou no de agressor - revela que 80% das matérias analisadas têm como fonte única ou principal os boletins de ocorrência. Isso corresponde a 912 dos 1.140 textos escolhidos por amostragem estatística dentre 14.905 matérias sobre o tema, veiculadas em 46 jornais de todo o país no período de 1º de julho de 2000 a 30 de junho de 2001.

Essas e outras revelações estão na revista Balas Perdidas, publicada pela Andi em parceria com o Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça e Amencar, com apoio do Instituto Ayrton Senna e do Unicef. A segunda pesquisa, por sua vez, centrou-se nos aspectos específicos
da violência sexual que atinge crianças e adolescentes.

O Correio adianta que 67,5% (contra 80% nos tipos de violência analisados em Balas Perdidas) das matérias sobre a exploração sexual têm, mais uma vez, os BOs como fonte única ou principal. São 485 dos 718 textos pesquisados, colhidos entre 3.717 matérias sobre o tema, veiculadas em 48 jornais de todo o país ao longo de um período de 18 meses (1º de janeiro de 2000 a 30 de junho de 2001).

Nos dois casos - violência e exploração/abuso sexual -, a Andi construiu rankings qualitativos da cobertura jornalística que enfatizam a imagem pouco edificante da imprensa. Com indicadores que possibilitam pontuar a qualidade da cobertura numa escala de 0 a 100 pontos, a média dos 46 jornais pesquisados não ultrapassa constrangedores 30 pontos nas matérias sobre violência. Os veículos mais bem posicionados não passam dos 39,1 pontos.

Já quando o foco é a violência sexual, os índices de novo avançam um pouco: a média geral fica em 38,3 pontos e os melhores situados alcançam 48,1. Realizada pela Andi em aliança com os Institutos WCF e Ayrton Senna, e com apoio do Unicef e da Fundación Arcor, a análise sobre o jornalismo e a
exploração/abuso sexual de crianças e jovens será destaque da edição da revista Infância na Mídia, a ser lançada em março.

As duas pesquisas deixam claro, contudo, que existem sinais confiáveis. Há excelentes exemplos, apesar de em número ainda reduzido, de reportagens que apostam na diversificação das fontes de informação, na utilização de dados estatísticos relevantes e na contextualização do ato violento sob o ponto de vista da história pessoal do agressor e/ou enquanto fenômeno social mais amplo, além de dedicarem o espaço necessário para discussão aprofundada de políticas públicas para o setor.

Surpreendeu positivamente o fato de só muito raramente a vítima ou o agressor serem retratados de forma desumana ou humilhante. Outro ponto é a
constatação, promovida por dados anexados ao ranking veiculado na revista Balas Perdidas, de que os jornais mais bem situados são, de maneira geral, os que investiram na extinção de suas Editorias de Polícia. Jornais com pior colocação são exatamente os que ainda mantêm a figura do repórter policial.

Merece menção, ainda, o fato da situação de a imprensa mundial não ser tão diferente da brasileira quando se analisa o tratamento dado à violência. No 2º Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, no Japão, a Andi apresentou as conclusões de sua pesquisa em seminário intitulado A Contribuição da Mídia, organizado pelo Unicef e Federação Internacional de Jornalistas. A constatação dos jornalistas, sustentada calorosamente por um público formado por atores sociais da área, é que a grande maioria dos repórteres não se encontra suficientemente capacitada a cobrir temas tão complexos quanto a exploração sexual de crianças e adolescentes.

Balas Perdidas é uma análise sobre imprensa e violência. Para obter esse e outros estudos, contacte a Andi pelo e-mail adm@andi.org.br ou pelo fone (61) 322-6508.

Veet Vivarta é jornalista e diretor-editor da Andi

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