Autoridades

Correio Braziliense

Brasília, segunda-feira,

14 de janeiro de 2002

Autoridades

Por Roseli Fischmann

Janeiro é mês importante para que se faça a programação do ano. Tendo em vista o ano eleitoral, vale uma reflexão sobre a preparação que homens e mulheres que se dedicam à política partidária poderiam buscar. Para início de conversa, vale lembrar que já para o exercício da cidadania, em geral, há um preparo que poderia ser desenvolvido pela população. Refiro-me à prática do diálogo intencional (isto é, não do ''papo furado'' ou da ''conversa de mesa de bar''), da reflexão sobre processos de disputa de poder nos mais diversos ambientes, da prática da assertividade.

Somos, ao contrário, um povo habituado, o mais das vezes, a transformar as coisas mais graves em jocosidade, o que se acredita ser virtude, sinal de bom humor e de saber viver. Se o riso é um dos mecanismos mais efetivos para corroer práticas autoritárias, manifestando-se, por exemplo, em humor refinado ou ironia elegante, o uso exacerbado e sem critério leva a atitudes que a tudo vulgarizam, banalizando o que é nobre e digno, muitas vezes ridicularizando-o, ou menosprezando conquistas importantes, invisibilizando-as. Ou, o que é pior, a exposição se faz pela incompreensão, acarretando constrangimento, fazendo com que o alvo da banalização do momento (como gente valorosa demais, que acaba sendo chamada de ''uma gracinha'') até sinta desejo profundo de sumir, invisibilizando-se. Gente que leva as coisas a sério pode ser chamada de mal-humorado, soturno, enquanto quem faz o tipo ''alegria da festa'' pode ter a popularidade máxima - ainda que na ética seja lamentável, mas pelo menos ''como é divertido''. A propaganda política, em breve no horário gratuito diário, muitas vezes exacerba a característica, perdendo a oportunidade de introduzir debates esclarecidos e questionamentos críticos. Escolhendo a pretensa facilidade, contra a abordagem inteligente e respeitosa do desejado eleitor, menospreza-o.

Parte da característica de vulgarização é o uso abusivo de palavrões, o uso familiar de xingamentos combinados com grosserias, a título de ''ser autêntico'' ou ''espontâneo'', sobretudo nas classes menos carentes e que mais acesso tiveram à escola, que se dão o trabalho de analisar (com condescendência, é claro) a própria atitude.

Vale relembrar aspectos menos encantadores do louvado jeitinho brasileiro (também responsável pela burla a leis, em nome do ''jogo de cintura'') para buscar compreender as cenas grotescas a que assistimos, no ano que passou, entre membros do Poder Legislativo, nas diversas esferas, em diferentes pontos do território nacional, em diferentes momentos. É certo que também assistimos a processos inéditos, que levaram à retirada, da cena oficial, de figuras que anteriormente ocuparam lugares destacados, tudo provocado por comportamentos inaceitáveis, anti-regimentais, ilegais. Discussão franca e abertura pública dos procedimentos - facilitada em boa parte pela presença correta da mídia - propiciaram o início de novos ares para a democracia tenra que se constrói no Brasil. Lamentavelmente, não deixaram de continuar havendo sopapos e troca de insultos entre outros representantes eleitos pelo povo para representá-lo na defesa da cidadania e não na cópia das características que mais o fragilizam, porém o início de transformação é evidente.

É por isso que vale a pena que as autoridades, por exemplo, do Poder Legislativo, pensem alternativas para a formação dos políticos, que haverá de redundar em benefícios para a população como um todo, tanto em termos de ser mais bem representados quanto em relação à possibilidade de transformação de mentalidade. Processo característico do tempo de longa duração, é evidente que o Brasil tem, dentro de si, a convivência de vários brasis, não só na óbvia diversidade étnica, racial, cultural, religiosa - e já é difícil adjetivar, tão diversa é - como também na multiplicidade de modos de mentalidades, que se combinam com a diversidade. Não se trata de refletir sobre a heterogeneidade de, por exemplo, posições políticas que convivem no interior de cada uma das diferentes manifestações da diversidade. Trata-se de algo diferente, que torna o quadro mais complexo, impossibilitando previsões.

Assim como não se pode falar de ''identidade nacional'' sem referir à construção cotidiana do Brasil que se compõe e recompõe na diversidade, não se pode falar de ''mentalidade nacional sem encarar uma miríade de interseções e desdobramentos. No âmbito público, por exemplo, o Instituto Rio Branco tem primado por formar profissionais que se destacam no cenário internacional por sua competência. Há pouco tempo, o consagrado jornalista Clóvis Rossi mencionava, em sua coluna na Folha de S. Paulo, o orgulho que sentira ao ver em cena, em negociação internacional, os representantes brasileiros, reiterando não ser nova a situação para ele, que tantas vezes dedica-se a coberturas internacionais. O detalhe para o qual gostaria de chamar a atenção, aqui, é que, como parte de sua formação, os diplomatas devem visitar as mais diferentes regiões do Brasil, não a turismo, é claro, mas para conhecer in loco a realidade por que atuam, cujos interesses defendem.

Que tal imaginarmos, por exemplo, os políticos fazendo visitas por todo o Brasil, não apenas os candidatos a presidente, que não podem escapar da sina, mas candidatos em geral, para que possam conhecer o Brasil de que tanto se fala, mas que pouco se conhece. Que possam ver as populações diversas, expressando a pluralidade cultural que temos, conversando com o povo, pelas ruas, sem intermediários ou mediadores. Seria uma forma de compreender melhor a dificuldade que é a construção da democracia, constatar que o empenho compensa, exigindo esforço, que auscultar mentalidades é uma forma de colocar em cheque a que se tem.

Há também, a lembrar, traços inevitáveis das lides diplomáticas, clareza e elegância de expressão e comedimento de atitudes, virtudes obtidas às custas de exercício e disciplina e fundadas no reconhecimento e respeito ao interlocutor, que, prevenindo mal-entendidos, podem, por exemplo, evitar guerras, propiciando que perdure o diálogo e vençam os argumentos. Gentileza e elegância tornam mais leve a vida e mais ameno o conflito que é inevitável quando se crê em pluralismo político - exigem método e disciplina, mas compensam, pelos frutos.

Temos representantes que nos dignificam e mostram a força da história do país: que possam ser líderes de um processo em que a argumentação competente, gentileza e conhecimento do Brasil sejam vitoriosos contra modos menores de exercer, ou propagandear, a possibilidade de representar o povo brasileiro.

Roseli Fischmann é professora de pós-graduação na USP e na Universidade
Presbiteriana Mackenzie, coordenadora do Instituto Plural e presidente do Júri Internacional do Prêmio Unesco de Educação para a Paz

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