Um convite à solidariedade Correio Braziliense Brasília, sábado, 02 de fevereiro de 2002 Um convite à solidariedade O convite seria um paliativo se não se acompanhasse de uma séria mudança das estruturas da sociedade, para que o acesso aos bens do progresso não seja um simples gesto de generosidade mas o fruto de uma sociedade realmente justa Dom José Freire Falcão A Campanha da Fraternidade é, cada ano, um convite à solidariedade com os mais frágeis e necessitados de nossa sociedade. Este ano, um apelo à solidariedade especialmente com os povos indígenas. Convite, também, para que nossa sociedade, tão profundamente marcada pelo individualismo e a desigualdade, se inspire na cultura indígena, comunitária e solidária. Convite à solidariedade, à justiça e à partilha. A solidariedade é um conceito fundamental na doutrina social da igreja, particularmente no ensinamento social de João Paulo II. Em sua encíclica Laborem Exercens, insiste na solidariedade no mundo do trabalho. Solidariedade dos homens do trabalho e com os homens do trabalho. E na encíclica Sollicitudo Rei Socialis, João Paulo II ressalta que o desenvolvimento para ser integral deve realizar-se no quadro da solidariedade e da liberdade. E no plano das relações internacionais, a interdependência deve transformar-se em solidariedade. Pois a solidariedade ''ajuda-nos a ver o outro - pessoa, povo ou nação - não como instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalho e a resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas como um nosso 'semelhante', um 'auxílio', que se há de tornar participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus'' (João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis). Os ''mecanismos perversos'' e as ''estruturas de pecado'' que existem em nossa sociedade, como a marginalização política e social de uma parcela ponderável de nosso povo, só poderão ser vencidos mediante a prática da solidariedade. O dever da solidariedade é para os cristãos a tradução no mundo moderno do preceito da caridade. Se a solidariedade, como valor humano, diz respeito a todos os homens de boa vontade, para os cristãos, à luz de sua fé, é uma virtude. Já João XXIII, na encíclica Mater et Magistra, associou a solidariedade à caridade em relação aos povos menos desenvolvidos e às populações subalimentadas. Ao ressaltar o dever da solidariedade entre indivíduos, grupos sociais e nações, sobretudo com os maios necessitados, a Igreja não julga que o recurso à contribuição espontânea de cada um, mesmo generosa e abundante, seja capaz de resolver os grandes problemas sociais de nosso tempo, particularmente de nosso país, como o desemprego, a carência de uma habitação digna para todos, o acesso à educação e à saúde, a concentração da renda, a chaga da pobreza que beira à miséria. Para a solução desses problemas se tornam necessárias opções políticas e profundas transformações estruturais. O convite à solidariedade seria um paliativo se não se acompanhasse de uma séria mudança das estruturas da sociedade, para que o acesso aos bens do progresso não seja um simples gesto de generosidade mas o fruto de uma sociedade realmente justa. E, por isso, fraterna. Ao aproximar-se a campanha eleitoral para o preenchimento dos cargos eletivos para os poderes Executivo e Legislativo, um dos critérios para a escolha de um bom candidato não pode deixar de ser sua visão da situação econômica e social de nosso povo e sua proposta de transformação da estrutura social, para que todos, com seu trabalho honesto, possam construir um futuro digno para si, para os outros e para o nosso país. Porque, nesta terra, não haverá jamais uma sociedade perfeita, haverá sempre marginalizados, não perde a atualidade o convite à solidariedade. A Campanha da Fraternidade tem o mérito de despertar a consciência de todos os cidadãos para um aspecto ou outro de uma realidade preocupante em nosso país, este ano, a situação dos povos indígenas. Não deixam de ser meritórios para a construção de uma democracia verdadeiramente social os movimentos e organizações de caráter social e político, que contribuem para essa consciência. Mas prestam um desserviço à democracia e ao bem comum quando cedem à tentação de posições extremistas e do recurso à violência, na ilusão de que sobre o ódio e a luta extremada de classe é possível edificar uma ordem social respeitadora da dignidade e dos direitos humanos, a qual promova o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens. Por fim, vale acrescentar que, se paz social é o fruto da justiça, o é igualmente da solidariedade. Dom José Freire Falcão é cardeal-arcebispo de Brasília © Copyright CorreioWeb Fale com a gente Publicidade |