Entrevista / André Roberfroid

Correio Braziliense

Brasília, quarta-feira,

13 de fevereiro de 2002

Brasil

Entrevista / André Roberfroid

Diretor-executivo adjunto do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) analisa políticas sociais para crianças

Paulo Paniago

Da equipe do Correio

O belga André Roberfroid, segundo homem na hierarquia mundial do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), gosta de reclamar. ''Meu dever é trazer notícias ruins para chamar a atenção de todos para a situação das crianças'', afirma. Os constantes puxões-de-orelha distribuídos pelo mundo em nome do Unicef, no entanto, não afetam sua esperança no futuro. ''Sou um otimista profissional.'' De passagem pelo Brasil para participar do II Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, ele aproveitou para conhecer projetos voltados para famílias carentes de Olinda, Pernambuco. Roberfroid ficou impressionado com a mobilização da sociedade brasileira e dos governos municipal, estadual e federal para aliviar os graves problemas enfrentados por meninos e meninas do país. Os resultados obtidos pelo país até o momento, no entanto, não o impressionaram. ''Com tantos projetos e vontade política é de estranhar que os indicadores sociais nacionais não sejam melhores'', observa. Em Brasília, ele falou ao Correio a respeito da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre a Criança prevista para maio deste ano, em Nova York. Roberfroid destacou o investimento na infância como a única maneira de romper o ciclo vicioso da violência que assusta o mundo. Segundo ele, as crianças hoje sofrem com problemas que não existiam há 15 anos. Caso do tráfico de bebês e órgãos infantis, além da explosão do turismo sexual com quadrilhas organizadas no mundo todo. A seguir trechos da entrevista:

Muitos programas, poucos resultados

Acácio Pinheiro

André Roberfroid viaja o mundo chamando a atenção para os problemas enfrentados pela infância. "Meu trabalho é estar sempre insatisfeito" CORREIO BRAZILIENSE - Como o senhor avalia a situação da infância no Brasil?

ROBERFROID - É muito difícil responder. Em primeiro lugar, o Brasil não é um país igual a outros, em tamanho e tradições. Percebi que este assunto está muito mais em debate aqui do que em outros lugares. Há muitos movimentos da sociedade civil, muitas iniciativas de prefeituras, que hoje lideram grande parte das ações bem-sucedidas nessa área. Diante disso, é de estranhar que os indicadores sociais nacionais não sejam melhores. O Brasil reconhece que a criança merece prioridade. Agora, comparar com outras nações é um recurso artificial. Preferimos no Unicef alertar para o que deve ser feito. É nossa razão de ser nunca estarmos satisfeitos (risos).

CORREIO - O senhor esteve em Olinda e conheceu um projeto da prefeitura para famílias carentes. Gostou do que viu?

ROBERFROID - Achei a abordagem interessante. Mostra a mobilização da sociedade em torno desse assunto. O número de crianças atendidas (350), no entanto, me parece que poderia aumentar mais rapidamente. Percebi uma imensa vontade política para manter o programa. É um bom projeto, bem-sucedido, e eu os desafiei a ampliá-lo.

CORREIO - Como se amplia o atendimento em projetos como o de Olinda?

ROBERFROID - Depende muito do empenho da prefeitura. Eles precisam ter habilidade para convencer outros investidores (empresários, a própria população, fundações, outros níveis de governo) a participar.

CORREIO - Qual a expectativa em relação à Sessão Especial da Assembléia das Nações Unidas sobre a Criança, marcada para maio, em Nova York?

ROBERFROID - Esperamos que o mundo reconheça a violação constante dos direitos das crianças, em primeiro lugar. Uma consciência que no Brasil, por exemplo, já há. Temos problemas muito graves, alguns que sequer existiam há 20 anos. Caso do tráfico de bebês e de órgãos infantis. A violência também tem crescido.

CORREIO - O senhor acredita que as crianças hoje sofrem mais com a violência?

ROBERFROID - Sim. Temos a violência institucional, crianças em prisões, abusadas, que apanham da polícia ou de outros prisioneiros, tráfico, turismo sexual. São fenômenos novos. Há 15 anos, o turismo sexual era limitado a alguns países, hoje existem quadrilhas atuando nessa área no mundo todo. Há crianças treinadas para matar, para torturar. Eles são guerreiros maravilhosos, não têm medo, cumprem missões que adultos se recusariam. Sofrem lavagem cerebral. Pode-se facilmente ensiná-las a odiar, transformá-las em assassinos. Esse é o crime mais hediondo. Entretanto, o bem dentro de cada criança é tão grande, que dentro de um ambiente seguro e saudável, ela se recupera completamente. Eu vi isso acontecer em Ruanda. É preciso assegurar que as pessoas que usam crianças dessa forma, jamais fiquem impunes. Os governantes precisam entender que investir em criança é mais do que um investimento social. Na opinião do Unicef, trata-se da única maneira de romper o ciclo vicioso da violência.

CORREIO - Qual a melhor forma de investir na infância?

ROBERFROID - Primeiro temos de quebrar o ciclo da morte, as crianças devem crescer com saúde. A mortalidade materna por doenças decorrentes do parto continua alta, faz parte do problema. Sabemos o que fazer para salvar essas vidas, mas falta acesso ao básico. Falta comida, em muitos casos. Garantidos os direitos essenciais, o item mais importante é a educação, a chave para o desenvolvimento de qualquer país. Vimos o poder de atração de investimentos de países com uma mão-de-obra qualificada. Isso aconteceu nos chamados Tigres Asiáticos (Coréia do Sul, Indonésia, Taiwan e Hong Kong).

CORREIO - E como anda a educação no Brasil?

ROBERFROID - Pode dar a impressão de que um país onde todo mundo tem acesso à educação (95% das crianças entre 7 e 14 anos estão matriculadas no ensino fundamental) está bem nesse quesito. Mas eu pergunto quantos completam o ensino básico (primeiros onze anos de escola)? Quantos recebem uma formação medíocre?

CORREIO - Quais as outras prioridades da conferência sobre as crianças?

ROBERFROID - Há algo novo, infelizmente, a Aids. A epidemia continua fora de controle, ela destruiu muito avanços na área da infância dos últimos 20, 30 anos (refere-se ao grande número de órfãos na África e o aumento da mortalidade infantil naquele continente devido à transmissão do HIV de mãe para filho). Sei que o Brasil tem uma política pública considerada referência no combate à doença. Insisto que falta prevenção.

CORREIO - Como a prevenção se aplica às crianças?

ROBERFROID - Os adolescentes precisam aprender um comportamento sexual seguro. Eles sabem como fazer, mas não fazem. A transmissão do HIV da mãe para o filho também precisa de informação para ser reduzida. Temos indicações de que esse tipo de contaminação cresceu. Em países como a África do Sul, a falta de prevenção provocou uma epidemia de proporções gigantescas (22% da população daquele país é portadora do vírus HIV). Hoje se disseminou a falsa impressão de que o coquetel de remédios combatem a doença. Mas o fato é que a qualidade de vida dos pacientes é muito ruim.

CORREIO - Faz dez anos líderes do mundo se reuniram e assumiram compromissos com as crianças que não foram cumpridos. Como evitar que isso aconteça depois da conferência de maio?

ROBERFROID - Existe uma questão complicada. O investimento na criança demora entre 20 e 25 anos para trazer resultados. Sem isso, no entanto, não haverá lucro algum em quatro ou cinco anos, e todos ficarão cada vez mais pobres. Em particular, qualquer chefe de estado concordará com esse raciocínio. Mas aí entra o jogo de tomada de decisões e nenhum político consegue fazer planos para prazos tão extensos. Ele sabe que nesse período de 20 a 25 anos existirão três ou quatro eleições. Então, precisamos usar essa sessão especial para montar um esquema de lobby social pesado. Criar uma pressão a partir das metas acordadas e cobrá-las constantemente (leia quadro abaixo). Temos que mudar a cultura dos políticos e o papel da opinião pública nesse sentido é fundamental.

CORREIO - O senhor esteve no II Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. É possível tirar um resultado prático do encontro a curto prazo?

ROBERFROID - Acho cedo para dizer. A principal conclusão é que o movimento antiglobalização irá continuar. O mais importante é que os jovens estão muito seriamente engajados em entender os problemas e buscar soluções, no lugar de ficar só na retórica vazia. Isso é um processo demorado. Mas sou um otimista profissional.

Leia a seguir os compromissos assumidos pelo governo brasileiro com a infância, em 1990, na Cúpula das Crianças. O país ficou longe de alcançar os objetivos em várias áreas.

Água tratada

O compromisso

Chegar a todas as famílias brasileiras

A realidade

Em 2000, 93% das famílias recebiam água potável em casa Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Saneamento

O compromisso

Atender todos os brasileiros

A realidade

Em 2000, 38% das famílias contavam com serviços de esgoto Fonte: IBGE

Educação

o compromisso

Matricular 80% das crianças entre 7 e 14 anos

A realidade Em 2000, 95% das crianças em idade escolar estão nas salas de aula

Fonte: Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)

Saúde infantil

O compromisso

Reduzir a taxa de mortalidade infantil em 33% A realidade

Em 2000,o país tinha conseguido reduzir a taxa em 30,6% Fonte: relatório do Unicef

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