Atentado à liberdade

Correio Braziliense

Brasília, terça-feira,

26 de fevereiro de 2002

 Atentado à liberdade

Todo ano, cerca de 50 mil pessoas são traficadas para os Estados Unidos e submetidas à escravidão. No mundo, pelo menos dois milhões de seres humanos passam pela mesma situação

Vicente Nunes

Correspondente

Nova York - Maria Choz tinha apenas 16 anos quando teve início a maior provação de sua vida. Seqüestrada por um amigo da família - Jose Tecum - de dentro da própria casa, em uma vila paupérrima da Cidade da Guatemala, capital de um dos mais miseráveis países da América Latina, ela foi levada para a cidade de Immokalee, na Flórida, Estados Unidos, onde foi escravizada. Durante os últimos três anos - Maria está prestes a completar 20 anos -, foi obrigada, todas as noites, a manter relações sexuais com Tecum, que a amarrava aos pés da cama. De dia, era forçada a trabalhar numa lavoura de tomates e a entregar a seu seqüestrador, todos os finais de semana, o dinheiro que recebia como salário. Somente no ano passado o drama de Maria chegou ao fim, quando oficiais do Departamento de Justiça dos Estados Unidos descobriram seu paradeiro e prendeu Tecum.

O caso da guatemalteca está sendo usado pelo secretário de Justiça norte-americano, John Ashcroft, como exemplo para divulgar uma ampla campanha do governo dos Estados Unidos contra a escravidão e o tráfico de humanos. Segundo ele, mais de 50 mil pessoas que entram no país todos os anos - alguma vezes, de forma legal - são traficadas e submetidas à escravidão, mal que, no terceiro milênio, o mundo ainda não conseguiu extirpar. Pelas contas da CIA, a Central de Inteligência dos Estados Unidos, pelo menos dois milhões de seres humanos são negociados anualmente como escravos no planeta. A maioria, crianças e mulheres. ''Como Maria, milhões de pessoas são roubadas de sua dignidade e aprisionadas por pessoas que põem a cobiça e a obsessão pelo dinheiro acima do mais básico direito humano: a liberdade'', diz Ashcroft.

O discurso do secretário de Justiça, um dos mais conservadores integrantes do gabinete do presidente George W. Bush, chama a atenção por destoar das ações restritivas que vêm sendo adotadas pela Casa Branca para dificultar a presença de estrangeiros nos EUA. ''Mesmo diante da disposição em fechar as fronteiras do país, o governo norte-americano não pode fazer vista grossa para problemas tão sérios como a escravidão e o tráfico de pessoas no país'', afirma um assessor do Serviço Nacional de Imigração (INS, sigla em inglês).

Não é à toa, diz ele, que o discurso de Ashcroft vem acompanhado de uma medida concreta para, pelo menos, amenizar o sofrimento das pessoas que são resgatadas dos traficantes e da escravidão. No fim de janeiro, o governo dos Estados Unidos criou um visto especial para as vítimas desses crimes, identificado pela letra T. ''Por mais que tivéssemos sucesso em retirar pessoas como Maria das mãos dos traficantes e da escravidão, permanecia a incerteza'', explica Ashcroft.

Marginalidade

Os ex-escravos recebiam uma curta permissão para permanecer em território americano. Na maioria das vezes sem trabalho, sem falar inglês e com sérias dificuldades para se encaixarem à sociedade, acabavam vivendo na marginalidade. Com o novo visto, acredita o governo norte-americano, essas pessoas poderão viver em condições mais humanas no país por três anos. Depois desse período, elas estarão aptas a requisitarem à Imigração a permanência definitiva no país. Os mesmos direitos serão estendidos a filhos e ao marido ou à mulher. As vítimas do tráfico e da escravidão menores de 21 anos poderão pedir o visto especial para os pais.

Trata-se de um importante avanço, avaliam especialistas na área de direitos humanos, pois a história tem mostrado que o resgate das mãos dos traficantes de humanos e da escravidão não significa a liberdade definitiva. Depois de salvos pela Justiça, os ex-escravos têm o direito de cobrar de seus ''ex-donos'', nos tribunais, todos os direitos trabalhistas que nunca receberam. Mas, quase sempre, as vitórias legais se constituem em conquistas vazias. Os criminosos - incluindo diplomatas, que lançam mão da imunidade - se esquivam dos processos, fugindo dos países em que traficaram e escravizaram.

Os casos registrados por entidades como a Coalizão para a Abolição do Tráfico e da Escravidão, com sede em Los Angeles, mostram que, sem apoio dos governos, os explorados sempre são empurrados novamente para os subterrâneos da sociedade, por serem imigrantes ilegais. Por causa dessa condição de ilegal, vários deles ficam detidos, durante meses, em prisões ou centros especiais de imigração. O problema se agrava porque, em muitas dessas instituições, o pessoal de apoio está sobrecarregado, além de mal equipado para lidar com as diferenças culturais e lingüísticas. ''O trauma de passar pelas mãos de traficantes e ser submetido à escravidão duram anos. A recuperação emocional e a independência financeira demoram anos para serem atingidas. Isso, quando alcançam, pois as estatísticas mostram que a maior parte das vítimas da escravidão, mesmo depois de salvas, continua a viver abaixo da linha da pobreza'', afirma Ashcroft.

Promessas

O oficial do INS alerta que a grande maioria das pessoas traficadas e escravizadas nos Estados Unidos vêm da Rússia, do México e de países da África e da Ásia. As vítimas são cooptadas pela prostituição, pelo trabalho doméstico, pelo serviço forçado em fazendas e em fábricas. Elas chegam aos Estados Unidos - ''a terra da liberdade'' - atraídas por promessas de bons empregos. Pensam que, num passe de mágica, vão organizar a vida. Mas logo percebem que não existem lugares para onde possam ir. Essa é a parte oculta da história, dizem os especialistas, culpando o governo norte-americano de, ao longo dos últimos anos, ter feito ex-escravos pagarem um preço altíssimo pela liberdade.

Um dos casos mais dramáticos desses equívocos aconteceu em 1997, em Nova York. As autoridades descobriram um grupo de 50 mexicanos surdos que viviam com quase uma centena de filhos em um cortiço. Eles vendiam, nas ruas e nas estações de metrô, pequenos objetos de valor por um dólar. Quando não conseguiam faturar o que seus ''donos'' esperavam, eram presos, espancados e torturados, inclusive com choques elétricos. Descobertos pela Justiça, e por serem as principais testemunhas contra aqueles que os escravizavam, os mexicanos ficaram confinados em uma garagem por quase um ano, sob vigilância constante da polícia. ''O custo imposto pelo governo dos Estados Unidos aos mexicanos, depois de todo o sofrimento da escravidão, foi alto demais'', declarou, na época do processo, a advogada dos ex-escravos, Karen Seymour.

Problema mundial

Um dos maiores estudiosos do tráfico humano e da escravidão da atualidade, o sociólogo britânico Kevin Bales, escreveu uma série de artigos mostrando que os crimes dessa natureza cometidos nos Estados Unidos são apenas uma pequena parcela do horror que assola o mundo. Ele estima, por exemplo, que cerca de um milhão de meninas com menos de 18 anos trabalham de graça como domésticas nas Filipinas. Cerca de um milhão de mulheres e crianças são negociadas pelo tráfico sexual anualmente, por uma quantia próxima de US$ 6 bilhões. O sociólogo lembra que, fora de seu território, os Estados Unidos têm multinacionais que fabricam têxteis, brinquedos, tênis e outros artigos de consumo mais baratos explorando mão-de-obra semi-escrava. Levando-se em conta todas as formas de escravidão, destaca Bales em seus estudos, 27 milhões de pessoas padecem desse flagelo no mundo.

Brasileira escravizada

O casal de brasileiros René e Margarida Bonetti chegou às primeiras páginas de todos os jornais dos Estados Unidos em 1999. Os dois foram acusados pelo FBI, a Polícia Federal norte-americana, de manterem, durante 20 anos, a empregada doméstica Hilda Rosa do Santos, 67 anos, em regime de escravidão. O engenheiro René, 53, foi preso e condenado pelo Tribunal Federal de Maryland, em Greenbelt, a seis anos e meio de prisão em agosto de 2000, além de ser obrigado a pagar cerca de US$ 300 mil a Hilda em salários. Margarida, 50, conseguiu escapar da Justiça ao fugir para o Brasil. Suspeita-se que, desde então, ela esteja vivendo no interior de São Paulo.

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