Terceiro fator

Correio Braziliense

Brasília, segunda-feira,

25 de fevereiro de 2002

Terceiro fator

Há um luto que o planeta não viveu, mergulhado no mercantilismo tecnológico e na globalização devoradora. O luto da perda de propostas e de sonhos, do triunfo da desrazão

Por Roseli Fischmann

A barbárie, já tanto repudiada, de 11 de setembro, fez eclodir, em manifestações públicas, sentimentos de revolta e ódio que outros povos e comunidades guardavam contra o modo ocidental de viver. Já a adoção da alternativa da guerra, após os ataques suicidas, por parte dos Estados Unidos e dos os países que os apoiaram, tem trazido repercussões de alcance ainda imprevisível.

O acirramento doloroso e brutal da situação no Oriente Médio, o fortalecimento bélico da situação na vizinha Colômbia, assim como, de outra parte, a escalada de violência que vivemos no Brasil, trazem a sensação de que estamos, nós seres humanos, perdendo a guerra. No caso, a guerra contra a incapacidade de diálogo, em prol da busca de alternativas não-violentas para implantação dos direitos por que tanto se trabalhou.

A retomada da tentativa de bipolarização como modo de organizar o mundo talvez seja o crepúsculo de um modo de compreensão da humanidade e do planeta que não tem mais espaço ou futuro. A plena possibilidade de implantação da ''era dos direitos'' implica tanto a compreensão crescente dos mecanismos que levam o ser humano a buscar submeter outro, como o controle baseado na autonomia.

A base da construção democrática é a liberdade, no sentido mais completo e complexo da palavra, fundadora da autonomia. A liberdade implica juízos e escolhas, feitas com responsabilidade e capacidade de arcar com as conseqüências. Implica a compreensão de que o pacto social - nacional e internacional - não pode ser apagado e refeito a cada vez, em bases individuais ou de determinações deste ou daquele grupo isoladamente. Em nível mundial, a possibilidade de construção de um projeto de comunidade internacional igualmente exige mais que reuniões e declarações, que se tentam retomar como bipolares. Se há algo da Guerra Fria que se retoma é a percepção e a prática de que, para que se mantenham ''frios'' espaços específicos, outros hão de ser incendiados, laboratório da discordância, da luta pela hegemonia. Os mortos nos conflitos e os que choram a morte sabem o que significa a escolha.

Há um luto que o planeta não viveu, mergulhado no mercantilismo tecnológico e na globalização devoradora. O luto da perda de propostas e de sonhos, do triunfo da desrazão. A retomada da lei do talião espalha-se, exigindo, urgentíssimo, uma atitude que coopere na implantação de novas possibilidades. No Oriente Médio, por exemplo, para todos os que estamos distantes geograficamente, não basta condenar um lado e ter simpatia por outro - seja qual for. Há o que fazer. Se é verdade que existe ali uma oposição histórica, os que possam viver a situação como ''terceiro fator'' podem cooperar para que se rompa a lógica dual que inspira a oposição de eliminação, construindo uma lógica da complexidade, própria da oposição de complementaridade.

A lógica da eliminação mútua é o que se pratica, na evidente assimetria entre os lados, contudo causando mortes de seres igualmente humanos, onde não há ''lado''. Mohamed ou Moshe, Fátima ou Raquel, precisamos gritar que os queremos todos vivos, trabalhando conosco para construírem uma nova ordem mundial, ensinando de dentro do sofrimento e do desespero que advém do medo de ser eliminado - sentimento que move os dois grupos - o sentido da reconstrução da vida, do ser humano e das esperanças para o planeta.

Solidária e partilhando a dor de israelenses e palestinos, acreditando na possibilidade da construção mundial do terceiro fator, venho ecoar Bobbio. Analisando e citando Kant, exorta a que ''não permaneçamos passivos e que não encorajemos, com nossa passividade, os que dizem que 'o mundo vai ser sempre como foi até hoje'; estes últimos 'contribuem para fazer com que sua previsão se realize', ou seja, para que o mundo permaneça assim como sempre foi. Que não triunfem os inertes!''

Roseli Fischmann é professora de pós-graduação na USP e na Universidade Presbiteriana Mackenzie e presidente do júri internacional do prêmio UNESCO de Educação para a Paz

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