A santa de casa

Correio Braziliense

Brasília, terça-feira,

26 de fevereiro de 2002

A santa de casa

O papa João Paulo II anuncia hoje a data da santificação de Madre Paulina, a beata italiana que chegou ao Brasil com 9 anos de idade. Em 500 anos de catolicismo, o país nunca teve alguém seu para venerar

Renato Ferraz

Da equipe do Correio

José Varella

A religiosa catarinense Célia Cadorin, 72 anos, promete não chorar quando entrar hoje às 11h (7h de Brasília) na solene e renascentista Sala Clementina, no Palácio Apostólico do Vaticano, na Itália. Mas teria razões para tanto. Desde 1981 ela se esforça para provar que Amabile Lucia Visintainer, a madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus, é uma santa. Conseguiu. ''Diante do exposto, nós aprovamos a canonização de Madre Paulina'', dirá o papa João Paulo II, por volta do meio-dia, para um grupo de 15 brasileiros. Em seguida, marcará a data da solenidade de santificação, provavelmente para a segunda quinzena de maio. No mesmo consistório, reunião aberta de cardeais com o papa, serão também definidas as datas da santificação de mais oito beatos: três latinos, como o índio mexicano Juan Diego, outros três italianos e dois espanhóis, como José Maria Escrivá, fundador da Opus Dei.

A canonização de Madre Paulina é um feito e tanto. Mesmo com 130 milhões de católicos declarados e 500 anos de história cristã, o Brasil é um dos raríssimos países do mundo a não ter alguém para venerar. Países vizinhos menores, como o Peru, já os têm desde o século XVII. O Japão e a Coréia, que nem católicos são, também têm os seus. Transformar alguém em santo com carimbo oficial do Vaticano é algo raro. O processo é longo, penoso e a concessão da cura (o milagre) precisa ser provada até por grupos de médicos. O processo de Madre Paulina, por exemplo, começou em 1965. Mesmo assim, por que demoramos tanto para conseguir? ''Por culpa da própria Igreja Católica'', diz Célia Cadorin. ''Nos faltou empenho'', reconhece dom Geraldo Lírio, arcebispo de Vitória da Conquista, na Bahia, e estudioso do assunto dentro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Em outubro de 1991, quando foi a Florianópolis beatificar (estágio anterior à santificação) Madre Paulina, o papa João Paulo II reconheceu que o país precisava de santos. ''De muitos santos'', frisou. Somente a partir de então a comunidade religiosa brasileira começou a levar a sério essa possibilidade. A irmã Célia Cadorin, por exemplo, hoje defende a causa de outras importantes personalidades, como o frei Antônio de Sant'Anna Galvão, o único beato brasileiro nato e cujo processo de canonização ficou parado por 60 anos. Há pelo menos 30 candidatos à espera do veredicto de Roma. Para
um deles, o padre José Anchieta, beatificado em 1980, só falta ficar comprovado o segundo milagre. Além do pouco empenho, outros fatores contribuíram para a escassez de santos tupiniquins. Primeiro, falta de dinheiro. A irmã Célia Cadorin já gastou U$ 60 mil para conseguir santificar Madre Paulina (conheça mais sobre sua vida na página 7). Como a festa da canonização ocorrerá em Roma, em função da saúde debilitada do papa, ela estima que gastará até o final do processo mais U$ 30 mil. Somente o processo de beatificação tem 5,5 mil páginas.

Toda a dinheirama saiu dos bolsos dos devotos de Vigolo Vattaro, terra natal da Madre Paulina na região de Trento, na Itália, e dos peregrinos do santuário em Vigolo, em Nova Trento, interior catarinense. Lá, a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, fundada pela nova santa, vive exclusivamente das doações, e o turismo religioso é responsável por 60% da arrecadação da cidade (leia mais sobre o santuário na página 7).

Irmã Célia também atribui a inexistência de santos à falta de fé. ''É muito difícil esse trabalho. Há muito medo de não dar certo. Vi muitos religiosos desistirem, com pessimismo, no meio do caminho'', conta ela. Para provar que alguém é santo, o postulador (ou advogado), geralmente da mesma congregação do candidato, tem que provar a ocorrência de dois milagres e que ele tenha 11 virtudes - algumas de caráter subjetivo, como humildade; outras concretas, como dedicação à oração e à caridade (Veja quadro abaixo). ''É um caminho no escuro'', comenta Irmã Célia.

Dom Geraldo Lírio acha que o tamanho do país também influenciou. ''Nossos santos são regionais. Podemos ter o Padre Ibiapina no Nordeste e o Padre Anchieta no Sudeste. Cada um venerado em sua região'', ressalta. De fato: Ibiapina, um cearense que dedicou sua vida aos pobres e doentes em todo o Nordeste, é desconhecido no restante do país. Do paulista Frei Galvão quase não se houve falar no Norte ou Nordeste. Isso, no entanto, não deveria ser um problema. ''O Brasil tem fé e tamanho para possuir muitos santos. Mas depende da gente. Que seja um por região, mas que seja'', defende dom Lírio.

Candidatos na fila

Frei Antônio de Santana Galvão

Nasceu em Guaratinguetá (SP), em 1739. Era filho de um português rico e culto que chegou ao Brasil por volta de 1730. Aos 13 anos, ingressou no seminário jesuíta, na Bahia. A Igreja anunciou sua beatificação em 1998, depois de reconhecer a cura de Daniela Cristina, então com quatro anos, que sobreviveu a uma hepatite aguda em 1990. A menina passou 28 dias na UTI de um hospital, desenganada pelos médicos. A mãe buscou as pílulas milagrosas do frei Galvão e a filha se recuperou completamente.

Irmã Dulce

A Mãe dos Pobres, morta em 1992, ficou célebre por criar hospitais na Bahia, onde nasceu. Abandonou o cargo de professora numa escola rica para trabalhar entre os miseráveis. Foram reveladas pelo menos 300 graças atribuídas a ela. Recebeu o hábito aos 18 anos e passou a socorrer crianças abandonadas, mendigos e doentes nas ruas de Salvador. Mas desde criança distribuía comida para os pobres. Chegou a ser considerada uma santa viva. Morreu aos 77 anos.

José de Anchieta

O jesuíta espanhol, que veio para o Brasil nos primeiros anos da colonização, é um dos fortes candidatos à santidade. Fundador de São Paulo, tornou-se o primeiro beato do país, em 1980. Ele dizia que viera para o Brasil para se dedicar aos índios. Com inteligência privilegiada, em poucos meses aprendeu as regras da língua tupi e, em 1555, esboçou sua gramática, publicada em 1595. Costumava desenhar versos na areia com um cajado, para apagá-los depois de memorizados.

Padre Reus

É o mais forte candidato do Rio Grande do Sul. Mas João Batista Reus nasceu na Alemanha, em 1868. Veio para o Brasil em 1900, como sacerdote da Companhia de Jesus. Viveu no estado até o final da vida, em 1947. Foi professor de liturgia, ciência naturais, matemática e física. A devoção ao padre leva milhares de fiéis ao seu túmulo, em São Leopoldo. O processo de beatificação corre no Vaticano há meio século.

João Pozzobon

Nasceu em 1904, em um vilarejo chamado Ribeirão, no Rio Grande do Sul. Era filho de família italiana que imigrou para o Brasil em 1878. Foi enviado aos 10 anos para o seminário. Ao final de sua vida completou 140 mil quilômetros caminhando em peregrinação. Iniciou a campanha do Movimento Apostólico de Schoenstatt em 1950, levando a imagem da Mãe Peregrina pelo país, durante 35 anos, sem falhar um dia, a casas, escolas, presídios e hospitais. Morreu em 1985.

Irmã Lindalva

Nascida em 1953, no município de Açu, no Rio Grande do Norte. Em janeiro de 1991, terminado o período de formação religiosa, foi enviada para o Abrigo Dom Pedro II, em Salvador. Sua missão era coordenar uma enfermaria da ala masculina, com 40 idosos. Foi assassinada aos 40 anos, por um dos internos que cuidava, por não corresponder a seu assédio. Morreu com 44 facadas. Teve o processo de beatificação aberto em 2000.

Caminhos da santidade

Em alguns casos, o processo de canonização pode levar mais de 100 anos.

Confira os principais passos

A diocese onde o candidato morreu deve levantar sua vida pessoal por meio de depoimentos e documentos. Nessa documentação, tem que ficar provado um leque de virtudes - como fé, esperança, caridade, justiça, castidade, humildade. Em seguida, a papelada é encaminhada ao Vaticano.

A Congregação das Causas dos Santos examina nos arquivos do Vaticano se nada há contra o candidato. Depois, nomeia um postulador para acompanhar o processo e dois peritos para produzir relatórios indicando ou não a existência dessas virtudes na biografia do candidato. Se houver discordância, um terceiro perito submete seu parecer ao tribunal, composto por cardeais.

A Igreja declara a heroicidade das virtudes. O candidato pode então ser venerado, mas ainda não publicamente.

Para a beatificação, a Congregação examina um ou mais milagres do candidato. Convocam médicos para isso. O processo é tão sigiloso que um médico não sabe do resultado do parecer do outro. Caso o milagre seja comprovado, é candidato é então beatificado pelo papa, podendo ser venerado na igreja da diocese onde viveu ou morreu e em sua ordem religiosa. Para a canonização, é preciso que ocorra novo milagre, posterior à beatificação. A partir daí, sua imagem pode ocupar o altar de qualquer igreja e seu culto é universal.

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