Cidades feridas

Correio Braziliense

Brasília, domingo,

24 de fevereiro de 2002

Cidades feridas

Vale sublinhar o empenho e o sacrifício com que certos moradores lutam pelo que restou de suas cidades para ressuscitá-las e talvez curá-las do golpe sofrido

Por Barbara Freitag

Entre 13 e 14 de fevereiro de 1945, a cidade alemã de Dresden, considerada até então a ''Florença do rio Elba'', foi bombardeada pelos aliados, sendo quase totalmente destruída. Esse violento ataque aéreo marcou o início do fim da Segunda Guerra Mundial, selada com a rendição incondicional da Alemanha nazista em 8 de maio do mesmo ano. A data é lembrada em número especial da revista Diário, dedicado às ''Metrópoles - histórias de cidades feridas'' (nº 46/ano IV/2001), editada em Milão.

Entre as ''cidades feridas'', ganham destaque Nova York e Kabul, Groszny e Beirute, Oklahoma e Sarajevo, Hiroshima e Stalingrado, Berlim e Dresden. Mas também encontramos referências a Tróia e Atenas, a Tenochtitlán e à Córdova da virada do século XIV/XV, reconquistada pelos reis católicos Fernando e Isabel. Ao mergulhar nos vários artigos sobre metrópoles tão distintas, localizadas em diferentes continentes, abrangendo mais de 500 anos de história urbana, é fácil identificar o denominador comum que permitiu aos redatores reunir todas essas cidades no suplemento especial da revista: são cidades vitimadas por guerras, feridas pela mão do homem.

Em seu livro clássico Cidades na história, Lewis Mumford faz referência à dupla vocação das cidades, simbolizada no hieróglifo egípcio que representa ''cidade'': o círculo envolvendo uma cruz ou grade. O círculo representaria as muralhas, a proteção e a defesa da vida, a cruz ou grade, a tomada de posse de um território, a ser conquistado e expandido. A primeira função estaria a encargo das mulheres, que geram, preservam, protegem a vida humana; a segunda função, a bélica, estaria a cargo dos homens, que transcendem os limites da própria cidade e invadem a alheia para conquistá-la, subjugá-la, dominá-la, depois de feri-la de morte. Tróia é o melhor exemplo. Como nos relata Homero, na Ilíada, Tróia resistira ao cerco dos gregos durante dez anos e finalmente é tomada graças ao cavalo de madeira, em cujo ventre se escondiam guerreiros. Os troianos, aceitando o falso presente como símbolo de sua vitória, levaram-no para dentro das muralhas. Como é sabido, os gregos saíram de seu esconderijo, incendiando a Tróia adormecida, cansada dos festejos de sua suposta vitória.

Ao ler os fascinantes artigos do suplemento ''Metrópoles: história de cidades feridas'', senti falta de dois aspectos que me parecem importantes no tratamento do tema: ou seja, de um lado, a busca de causas para os ferimentos que não fossem exclusivamente as guerras e, de outro, o papel dos habitantes na reconstrução das cidades destruídas.

Passando em revista várias cidades cujo destino fascinou a imaginação dos homens, constatei que a guerra parece ser somente uma das muitas causas dos ferimentos causados e sofridos. Entre outras causas, é preciso mencionar ''as forças da natureza'', como tempestades, incêndios, terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, enchentes, entre outras. É o caso de Lisboa, abalada várias vezes por terremotos, dos quais o de 1755 foi certamente o mais grave e tenebroso. É o caso de Pompéia, que poucos anos antes da erupção do Vesúvio, em 79 d.C., que a soterraria sob cinco metros de cinzas, tinha sido fortemente abalada por um terremoto. É o caso de cidades centro e norte-americanas como Manágua e México, Los Angeles e San Francisco, construídas em territórios móveis da costa do Pacífico, onde freqüentemente se manifestam megarreajustamentos das diferentes camadas e placas do subsolo terrestre. É o caso de cidades inundadas pelas águas de enchentes, como aconteceu na virada do ano de 2001/2002 com a cidade histórica de Goiás, inaugurada enquanto patrimônio da humanidade pela Unesco e, logo após, destruída pelas águas do rio Vermelho. Mas também foi o caso da Londres do século XVII, cujo centro foi tomado pelas chamas, em um dos maiores incêndios (1666) que destruiu a maior parte das casas e lojas de seus moradores da City, como informa Peter Ackroyd em London the Biography. Lembremos ainda que nos anos 80 do século XX o histórico bairro lisboeta do Chiado sucumbiu às chamas, ameaçando a sobrevivência de outros bairros históricos da cidade à margem do Tejo.

Ainda poderíamos classificar como ''catástrofes da natureza'' certos surtos de doenças e epidemias, como a peste negra, que dizimou amplas faixas da população européia na Idade Média. As chamadas Colunas da Peste, que se encontram até hoje em cidades católicas do Velho Mundo, constituem verdadeiros ''memoriais'' de ferimentos profundos causados a cidades como Viena, Praga, Munique. Essa lista poderia ser ampliada ad infinitum. Também poderíamos recordar a relação entre a ação (ou falta de ação) do homem com fenômenos da natureza, provocando desequilíbrios ecológicos, crises climáticas, degradação do meio ambiente que podem levar a ''ferimentos urbanos'' como antecipados por Inácio Loyola Brandão para São Paulo e que hoje já parecem ser realidade consumada na Cidade do México (a antiga Tenochtitlán dos aztecas) e outras megalópoles do hemisfério sul.

A segunda lacuna no suplemento é a falta de uma referência à coragem, perseverança e insistência com que boa parte dos moradores de uma cidade ferida se dedicam à reconquista, reconstrução e salvação do tecido urbano e da vida cotidiana atingidos por uma catástrofe. É especialmente esse aspecto das cidades em discussão que merece o nosso respeito e nossa deferência. Vale sublinhar o empenho e o sacrifício com que certos moradores lutam pelo que restou de suas cidades para ressuscitá-las e talvez curá-las do golpe sofrido. São essas reações de solidariedade e disposição para a cooperação e o trabalho que nos autorizam a usar a expressão ''cidades feridas''. Diferentemente de ''cidades em ruínas'' ou ''cidades mortas'', onde a vida urbana já foi extinta, depois de ataques externos ou enfermidades internas, a ''cidade ferida'' ainda dispõe de uma população urbana, disposta a lutar pela ''cura'' de sua cidade, esforçando-se por tratar as feridas e devolver à cidade outrora orgulhosa a dignidade e a beleza que a distinguiam das outras. Tróia pertence ao rol dessas cidades feridas, porque os sobreviventes do incêndio que destruiu Tróia VIIa ergueram sobre suas cinzas outra cidade: Tróia VIIb.

O terremoto de Lisboa, de 1755, seguido de maremoto, poderia ter destruído a capital do grande império colonial português para sempre. Não faltaram vozes que quisessem atribuir a catástrofe à ira divina desencadeada ''em represália moral'' aos costumes depravados dos lisboetas. Kant, Voltaire e Goethe foram os primeiros a opor-se a tal interpretação, buscando explicações científicas para o desastre desencadeado pela natureza. Mas os portugueses sobreviventes não se deixaram abater. O marquês de Pombal descartou as sugestões de alguns compatriotas em deslocar a capital lusitana para outros territórios à margem do Tejo e a fez reconstruir no mesmo local, dando-lhe o traçado quadriculado da ''Baixa'', preservado até hoje. Salvou desse modo a cidade ferida e inauguraria a modernização da capital, que encontraria seu final feliz com a Expo-98, na última exposição mundial do segundo milênio.

Dresden foi a cidade mais ferida da Segunda Guerra, conforme registrou o autor americano Kurt Vonnegut em sua novela Matadouro 5, na qual procurou reconstituir os fatos do bombardeio, ao qual assistiu como prisioneiro de guerra em Dresden. A reconstrução da cidade ferida aconteceu sem a ajuda dos aliados ou dos soviéticos. Foram os próprios sobreviventes da margem esquerda da cidade que começaram a reconstruir o famoso ''Zwinger'', um tesouro da arquitetura barroca que guarda um dos maiores acervos da arte contemporânea, a ''Marienkirche'', ainda hoje em reconstrução com doações de amadores e voluntários do mundo inteiro, e de uma das mais conhecidas casas de ópera da Alemanha central, a ''Semperoper'', que devolveria aos moradores o sentido de dignidade e continuidade histórica, destruída não só pelos bombardeios como pela barbárie nazista, que os provocou. Em Berlim, tornou-se famosa a caracterização das viúvas de guerra como ''Trümmerfrauen'' (as mulheres das ruínas). Graças a elas, os escombros dos prédios derrubados por tanques e aviões passaram por uma triagem, que separou tijolos e materiais de construção ainda aproveitáveis.

Foi essa disposição corajosa que também marcou os nova-iorquinos depois dos ataques terroristas ao WTC. A solidariedade tomou conta das pessoas. A vontade de resistir ao desespero, de ''dar a volta por cima'' e curar o ferimento foi o espírito que predominou. Os sobreviventes de Manhattan, inicialmente paralisados e descrentes diante do desmoronamento das duas torres geminadas, verdadeiro coração da cidade e símbolo do poderio econômico-financeiro de toda a nação americana, reagiram e voltaram à ''normalidade'', retomando o ritmo de trabalho frenético da cidade ferida pelo atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, mostrando que a vida continua, tinha de continuar.

Foi essa disposição admirável que também caracterizou a reação dos goianos, que viram ruir sua cidade histórica recentemente inaugurada como patrimônio histórico da humanidade. Apesar da perplexidade e tristeza com que acompanharam o desmoronamento de suas casas históricas, dizimadas pelas águas violentas do rio Vermelho, os habitantes de Vila Boa de Goiás mostravam a mesma disposição dos troianos, berlinenses e nova-iorquinos: ''reconstruir é preciso!'' Todos queriam preservar a cidade que serviu de berço ou forneceu a moldura para uma visão de mundo, de vida, de formatação da personalidade, salvá-la daquela cheia anunciada por Cora Coralina, ''a menina feia da ponte da Lapa'': ''Cheia no Rio/chuva nos morros/ velha casa de nós todos. Saudade em toda parte e a copa do babaçu''. (Caderno Idéias de 12 de janeiro de 2002).

Entre cidades vivas e cidades mortas ou em ruínas, inserem-se as ''cidades feridas''. Elas pedem socorro, e os primeiros que ouvem seu grito de dor são os moradores, que nelas se sentem em casa e onde reencontram sua origem e inspiração.

Barbara Freitag é professora pesquisadora da UnB

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