Doce humanista

Correio Braziliense

Brasília, quarta-feira,

27 de fevereiro de 2002

Lucio Costa 100 anos

O homem do século

''Era a delicadeza em toda a sua riqueza e profundidade'', escreve Thiago de Mello

DOCE  HUMANISTA

Thiago de Mello

Tive a alegria, que nunca se acabou, de conhecer Lucio Costa no começo dos anos 50. Fui (tomei coragem) levar meus poemas ao Carlos Drummond de Andrade, a quem também ainda não conhecia, lá no 9º andar do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Drummond leu meus versos, disse que eu havia nascido com a tara, conversamos sobre o Amazonas e, no instante da despedida, o poeta me levou a um canto da sala e me apresentou a um cidadão de bigodes severos e sorriso meigo, seu companheiro de trabalho no Serviço de Patrimônio Histórico Nacional, criado e dirigido por Rodrigo M. F. de Andrade. Era Lucio Costa, a quem eu conhecia só de nome e já de fama: lera mais de uma vez o seu nome gravado numa coluna do Ministério entre os criadores do edifício.

Ao estender a mão para me despedir do homem famoso, ele simplesmente disse: ''Não, senhor. Faço questão de acompanhá-lo ao elevador!'' Não ficou na porta do elevador. Desceu comigo e simplesmente me disse que queria ler os meus poemas, que me desse autorização para pedi-los ao Drummond. Pois foi assim: num só dia conheci duas pessoas que passaram a fazer parte de minha vida, na qual tiveram a maior importância.

Foi convivência de quase meio século. Falávamos muito mais da vida do que da arte. Da vida do homem neste país e neste lindo e degradado lugar chamado Terra. Quando passei a visitá-lo com mais freqüência em sua casa do Leblon, Lucio comentava os fatos do dia, divulgados pela televisão. O meu amigo padecia de indignidade moral contra tudo que fere a beleza da dignidade humana.

Lucio escrevia como um príncipe. Não era só um dos grandes arquitetos e urbanistas do século. Era um poderoso humanista. E um escritor de primeira água. Basta ler os textos que escreveu quando nomeado diretor da Escola de Belas Artes, os seus ensaios sobre arquitetura brasileira (um deles traduzi e publiquei no Chile quando fui adido cultural naquele país). O livro que nos deixou, sobre sua vida e sua obra, é desses que nenhuma pessoa que se pretenda culta pode deixar de ler. É uma luminosa lição.

Gostava e pedia que eu lhe dissesse poemas, em voz alta. Falava da qualidade musical e do ''timbre intimista'' de minha voz. Durante os anos em que escreveu sua autobiografia, eu lia para ele trechos que ele acabara de escrever. Estar com Lucio, ouvir a sua voz cheia de sabedoria e de doçura, foi uma das grandes bênçãos de minha vida. Ficou feliz quando lhe disse que Joaquim Cardozo, só conhecido como engenheiro-calculista, era um de meus poetas prediletos. Era também o dele.

Quando voltei do exílio e saí da cadeia, disse, em entrevista coletiva, que ia viver na minha floresta, que queria ter minha casa lá. Uns três dias depois, Lucio me chamou e disse ''Venha buscar a sua casa porque ela já está pronta''. Um dia, levei a ele fotos da casa em construção. Ele me agradeceu tão efusivamente como se fosse um principiante vendo seu primeiro projeto em execução.Eu é que deveria agradecê-lo. Nunca teria dinheiro para pagar à altura um projeto de Lucio Costa. Divulgada em reportagens pela imprensa ou em revistas especializadas, nacionais ou estrangeiras, é considerada uma bela obra-prima. Depois Lucio projetou uma segunda casa, que construí num lugar mais silencioso, na beira do rio Andirá; e um pavilhão que termina por uma torre, para abrigar biblioteca e museu. Em toda a Amazônia são os únicos projetos de Lucio desenhados e edificados.

Era a pessoa mais delicada que já conheci. Era a delicadeza em toda a sua riqueza e profundidade. O respeito que tinha por si próprio e pelo seu trabalho lhe advinha do superior respeito pelo ser humano. Por toda e qualquer pessoa que conhecia.

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