Fome no país preocupa ONU

Correio Braziliense

Brasília, quarta-feira,

06 de março de 2002

Brasil

SEM COMIDA

Fome no país preocupa ONU

Nações Unidas enviam inspetor para saber se o governo brasileiro está adotando medidas para reduzir a pobreza. ONGs querem reaquecer comitês de cidadania criados pelo sociólogo Betinho

Marina Oliveira

Da equipe do Correio

Miséria brasileira: As Nações Unidas passararam a reconhecer que a fome no mundo é tão degradante quanto a tortura O Brasil está pelo menos trinta e seis anos atrasado em relação a compromissos assumidos com a comunidade internacional de garantir alimentação adequada a todos. Em 1966, o país assinou o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais junto com outras 143 nações. Em 2001, no entanto, 49,6 milhões de brasileiros ganham menos do que o suficiente para comprar uma cesta básica por mês, segundo números do Mapa da Fome, da Fundação Getúlio Vargas. Os números deixaram de causar surpresa por aqui há muito tempo, mas podem ganhar força nova nos próximos dias por pressão de organismos internacionais.

Pela primeira vez na história, as Organizações das Nações Unidas (ONU) despacharam um representante oficial para verificar como anda a fome no Brasil. O relator oficial do Direito à Alimentação, Jean Ziegler, chega ao país com uma autoridade inédita. O direito de comer todos os dias ganhou status de direito humano fundamental. Parece estranho, mas só de alguns anos para cá a ONU passou a reconhecer que a fome é tão degradante quanto a tortura. Assim como a pobreza extrema e a falta de um lugar digno para morar.

CONSTRANGIMENTO

Hoje, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados promove no auditório do Ministério da Saúde o Seminário Nacional pelo Direito à Alimentação. É o primeiro grande evento da visita de Ziegler. Autoridades do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e também da sociedade civil estarão definindo quais as suas obrigações com os famintos.

Uma conversa importante, mas extremamente atrasada. No pacto assinado pelo Brasil em 1966, no artigo 12, existe um detalhamento específico do papel de cada uma dessas instituições no combate a fome. ''A presença do relator irá trazer fôlego novo para garantir comida na mesa de todo brasileiro'', acredita Luciano Wolff, da ONG Rede de Informação e Ação pelo Direito de se Alimentar. ''Contamos com o poder de constranger as autoridades e as pessoas comuns que o relator da ONU sempre tem'', torce.

A última vez em que o combate à fome mobilizou toda a sociedade foi há quase dez anos. Na época, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, criou os comitês locais para garantir o direito básico de comer. De lá para cá, muitos grupos fecharam e outros se transformaram em simples núcleos de caridade para aliviar necessidades imediatas.

Personagem da notícia

Conhecedor das mazelas brasileiras

INDIGENTES

49,6 milhões é o número de brasileiros que vivem na miséria 29,3% é o quanto representam da população total do país R$ 79 é quanto ganham por mês, menos do valor de uma cesta básica Fonte: Mapa da Fome da Fundação Getúlio Vargas, 2001

O professor suíço Jean Ziegler conhece bem as mazelas sociais brasileiras. Experiência adquirida nos livros e também nas ruas. Durante vários anos, foi professor visitante da Faculdade Cândido Mendes e da Pontifícia Universidade Católica (PUC), ambas no Rio de Janeiro. No Laboratório de Sociologia da Universidade de Genebra, na Suíça, dedicou-se ao estudo das sociedades do Terceiro Mundo, em especial a do Brasil.

A visita do professor, entretanto, é diferente de todas as outras feitas ao país. Ele carrega agora o carimbo oficial da Organização das Nações Unidas (ONU). Em viagens pela zona rural do Maranhão e do sertão nordestino, ou na periferia urbana do Rio e de São Paulo, Ziegler será os olhos e os ouvidos da comunidade internacional. Procura evidências do empenho do Brasil em eliminar ou não a fome.

O resultado das peregrinações previstas para terminarem no dia 20 de março irão virar documento oficial da ONU. O conhecimento prévio da realidade brasileira e a biografia do professor suíço deverão temperar o relatório final com um tom especialmente crítico.

Ziegler faz parte do Comitê Executivo do Socialismo Internacional, da Organização Não-governamental (ONG) francesa, Attac. A mesma Attac defende a criação da Taxa Tobin, uma espécie de CPMF sobre movimentações financeiras entre nações, como forma para corrigir as desigualdades sociais.

Ziegler participou, inclusive, do comitê de preparação para o Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre para discutir os efeitos negativos da globalização. Credenciais não faltam ao relator especial para o Direito à Alimentação da ONU.

Em Brasília, ele cumpriu uma agenda extensa de compromissos com autoridades federais. Passou a tarde inteira reunido com o secretário nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, o também professor de sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Paulo César Pinheiro. Faz parte da política de boa vizinhança da ONU antes de puxar a orelha dos governantes, mostrar que conta com o apoio oficial na visita. Depois é outra história. Na estrada, os relatores especiais costumam descrever com dureza as mazelas encontradas.

Em 2000, o relator especial da ONU contra tortura, o inglês Nigel Rodley, chamou sem mais rodeios o sistema penitenciário brasileiro de um dos piores do mundo. O então ministro da Justiça, José Gregori, chiou. Lembrou que o governo central abriu as portas das delegacias e das prisões para a devassa internacional. Nesse ponto, o trabalho de Ziegler será mais simples. A fome no Brasil anda solta, nas ruas das grandes cidades ou nas pequenas vilas do interior. Basta ter olhos para ver. (MO)

ROTEIRO SERÁ DIVERSIFICADO

O roteiro de viagem do relator da ONU, Jean Ziegler, foi preparado com cuidado. Em novembro e dezembro último, ONGs, representantes de igrejas, juízes, parlamentares e funcionários dos ministérios mandaram sugestões para a agenda de Ziegler no Brasil. No final, optaram por locais representativos da fome urbana e da rural. Ele visitará o sertão Nordestino e o interior do Maranhão, além da periferia do Rio e de São Paulo.

© Copyright CorreioWeb Fale com a gente Publicidade