Pra que serve o professor?

Correio Braziliense

Brasília, domingo,

03 de março de 2002

Bom professor e bons livros são a melhor maneira de criarmos no país uma elite pensante e criadora, independente, capaz de fazer as próprias escolhas

Jaime Pinsky

Todo começo de ano é a mesma coisa: jornais apresentam a lista dos aprovados no vestibular, revistas fazem reportagem sobre os ''segredos'' dos que entraram nas melhores faculdades, rádios noticiam trotes e até as tevês se lembram de que a educação existe. Alguns professores manifestam-se a favor da aprovação ''automática'', outros são contra; afoitos confundem algumas boas universidades privadas com as unidrogas e unigranas que infestam o país e decretam a falência do ensino público, por caro e ineficiente (esquecendo-se dos hospitais universitários que sustentam, da pesquisa que promovem e dos quadros de todo o país que formam em seus cursos de mestrado e doutorado). Os moderninhos falam da Internet como substituto dos livros de pesquisa, do telecurso gravado como substituto do professor e das aulas moduladas, padronizadas e pasteurizadas, vendidas aos pacotes, como saída única para os cursos de ensino médio.

Por mais que eu me prepare para esse conjunto inarticulado de besteirol pós-carnavalesco, sempre me surpreendo. Será que é má-fé ou ignorância mesmo? Opto por uma mistura variável desses elementos, acrescida de uma dose não desprezível de irresponsabilidade. Educar, afinal de contas, é um negócio sério, não um negócio qualquer. Mesmo que muito rentável. E mesmo que uma importante fatia da classe média tenha desistido de educar os próprios filhos.

Sim, pois essa história de terceirizar tudo, da atenção aos idosos aos cuidados com os bebês, da convivência com os moribundos até a transmissão de conhecimentos, nunca foi tão generalizada nas sociedades humanas como hoje em dia. Nossos velhinhos são generosamente despachados para fora de nossas casas, uma vez que a figura do sábio experiente não tem mais lugar algum num meio em que interessa mais a velocidade e o número de informações, não sua qualidade ou profundidade. Bebês são tolerados, desde que venham acompanhados de babás: o mundo das formas perfeitas exige mães enxutas, não dedicadas. A morte, acompanhada de todo o seu ritual de passagem, que consiste numa despedida e no envolvimento de toda a família, foi substituído por convenientes mas solitários falecimentos hospitalares, em que o agonizante é apenas o usuário do plano de saúde X ou Y, o ocupante do leito tal da UTI, o paciente do dr. Fulano, e nunca um ser completo, com história pessoal, profissional e descendência.

Na educação é a mesma coisa: enviar uma criança para a escola, hoje em dia, é esperar que lá ela receba tudo. A maioria dos pais abdicou o direito de educar os próprios filhos em nome da falta de tempo e da incompetência. De casa eles apenas saem com a informação de que o professor é um coitado, ganha pouco, mas o pouco que ganha é pago por ele, aluno e seus pais, donde não passa de um empregado seu. Neste país que arrota valorizar a educação ouço, freqüentemente, histórias de desrespeito e humilhação contra os mestres. E, contudo, eles estão se tornando cada vez mais importantes... Um filme recomendado por um professor, um juízo de valores que ele formula, um livro que ele indica podem abrir universos ou fechar caminhos.

O professor bem formado e sensível percebe cada aluno como um ser especial, podendo marcá-lo de maneira indelével para o resto da vida. Eu me lembro até agora de alguns grandes mestres que tive a sorte de ter, como o professor João Tortello, que só sossegou quando conseguiu me transformar de machadófobo em machadólatra. Tortello, leitor sutil de Machado de Assis, insistia comigo, leitor voraz de tudo que me caía às mãos, que saborear, aos poucos, pode ser muito mais proveitoso do que devorar rapidamente. Ou como o professor Ruy Nunes, tomista de quatro costados, que, por conta de sua apologia aos filósofos de linha católica, me fez ler Bertrand Russel e todos os autores agnósticos importantes, para poder questionar suas idéias.

Ser professor é estabelecer um diálogo entre o patrimônio cultural da humanidade e a cultura do educando. Isso supõe um profissional culto, com visão crítica, sem dúvida, mas orgulhoso do fato de pertencermos à espécie humana, por tudo o que já criamos de bom. Supõe-se, por outro lado, um educador sensível, capacitado a perceber o universo cultural dos jovens alunos, diferentes uns dos outros devido à localização geográfica, origem social, valores trazidos e assim por diante. O bom professor é, portanto, aquele que não tenta impor apostilas prontas, que não treina, mas educa. Cães devem ser treinados, seres humanos devem ser educados.

Não adianta encher as salas de telinhas ou telões: na Internet, na tevê, na mídia, as pessoas se informam. Organizar as informações, quem deve fazer é o professor. E o livro. No livro, em vez da atenção difusa e atomizada de vídeoclip que a ''pesquisa'' de Internet propicia, temos tempo de ler, reler, refletir, sem apelos luminosos nos agredindo de todos os lados. Com isso desenvolvemos um pensamento articulado, bem organizado. Significa que não-leitores não podem conseguir bons empregos? Não, significa apenas que não- leitores são incapazes de criar sistemas, embora possam aplicá-los muito bem. Bom professor e bons livros são a melhor maneira de criarmos no país uma elite pensante e criadora, independente, capaz de fazer as próprias escolhas. Ou no nosso projeto de globalização nos cabe apenas o papel de aplicadores de sistemas alheios?

Jaime Pinsky, doutor e livre docente da USP e professor titular da Unicamp, é historiador, diretor da Editora Contexto e autor de diversos livros, entre os quais Cidadania e Educação

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