A infância no crime

Correio Braziliense

Brasília, sábado,

02 de março de 2002

Brasil

VIOLÊNCIA URBANA

A infância no crime

O falso poder de possuir uma arma e bons lucros seduzem cada vez mais crianças para o mundo do narcotráfico. Chefes de quadrilha preferem recrutar menores porque as penas aplicadas aos pequenos infratores são mais curtas

Marina Oliveira

Da equipe do Correio

Meninos traficantes mostram com orgulho suas armas: renda mensal de até R$ 1.000 supera em duas vezes os salários dos pais. Nas favelas do Rio de Janeiro meninos viram homens aos 12 anos. O corpo e a cabeça adolescentes assumem compromissos de adulto. Mantêm um casamento de fato, com companheiras tão novas quanto eles. Ganham o pão de cada dia no tráfico de drogas. A renda entre R$ 600 e R$ 1.000 mensais equivale a pelo menos duas vezes o salário de seus pais. Em termos de escolaridade, entretanto, os meninos traficantes não conseguem superar os pais. Das mães, geralmente empregadas domésticas, e dos pais, na maioria dos casos desempregados, herdaram uma escolaridade inferior à média brasileira, de seis anos de estudo, que já é baixíssima.

As informações fazem parte de um auto-retrato feito por 40 crianças, todas do sexo masculino, que participaram de pesquisa promovida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). O estudo, lançado ontem no Brasil, com o nome de Emprego de crianças e adolescentes no tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro, revela as razões dos garotos para entrar no crime.

Na maioria, são negros e pardos. Pertencem às famílias mais pobres da periferia. Traficam por dinheiro, para comprar bens materiais aos quais nunca tiveram acesso. Mas há outras razões. O poder das armas, a bravura no confronto com a polícia e as garotas atraídas pelas ''posses'' desses meninos-homens aumentam sua auto-estima. Um artigo escasso nos morros cariocas.

''A participação de crianças cada vez mais jovens no tráfico de drogas não se explica somente pelo aumento da criminalidade ou as dificuldades econômicas'', observa Pedro Américo Oliveira, coordenador do Programa Internacional para Erradicação do Trabalho Infantil da OIT. De uma forma perversa, o crime traz uma valorização social que os filhos da pobreza não costumam gozar no Brasil.

No início da década de 90, os traficantes relutavam em empregar menores de 18 anos. Achavam que faltava profissionalismo nos meninos. Informações colhidas pelos pesquisadores da OIT na Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro mostram a mudança na postura empresarial dos traficantes. Entre 1996 e 2000, os atos infracionais relacionados com o comércio de entorpecentes chegaram a 35,5% do total de registros.

Na prática, significa que em 1990 a idade de entrada no tráfico carioca estava em 15 anos. Em 2000, caiu para 12 anos. A corrupção policial está na raiz da estatística chocante. Os bandidos descobriram que sai mais barato livrar meninos do que adultos da prisão. As ''penas'' aplicadas aos menores de 18 anos são mais curtas e por isso o suborno para liberar os garotos da internação tem custo mais baixo.

MENINOS TRAFICANTES

MAIORES MEDOS

Prisão

Morte

Traição de amigos

RAZÕES PARA PERMANECER NO CRIME

Amigos fundamentais estão no tráfico. Sentem necessidade de pertencer a um grupo para manter a auto-estima que, em geral, é muito baixa. Acreditam que, depois de algum tempo no negócio, tornam-se muito visados pelos grupos rivais e pela polícia. Eles têm medo de abandonar a ''rede de segurança'' formada pelo tráfico.

COMO SAIR?

As crianças e adolescentes que atuam no tráfico acreditam que só conseguirão abandonar o trabalho: se juntarem muito dinheiro, se apaixonarem por uma companheira honesta, arranjarem um bom emprego ou mudarem de cidade.

COMO EVITAR A ENTRADA NO TRÁFICO?

Familiares, jovens, policiais e técnicos da Justiça ouvidos pelos pesquisadores apostam nas políticas públicas de prevenção. Querem incentivo à educação, mais lazer e esporte na periferia. Também acreditam que, se o nível de renda dos pais fosse maior, os adolescentes da favela seriam menos atraídos pelo tráfico.

Fonte: Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets)

Mais longe da escola

A escola fracassou na favela. A avaliação aparece claramente no estudo da OIT, divulgado ontem. Segundo o documento, 48% daqueles adolescentes sem trabalho nos morros e periferia carioca, estão foram da sala de aula, embora existam vagas para receber esses alunos. O desinteresse tem explicação lógica. O estudo na favela compensa menos do que no asfalto. Os ganhos médios dos que moram no morro e completaram 11 anos de escola são inferiores aos daqueles que vivem no resto da região metropolitana do Rio e ficaram 8 anos nas salas de aula.

As meninas são maioria no grupo dos ''desocupados'' e fora da escola. O contingente delas é três vezes maior do que o de garotos na mesma situação. Na realidade, as jovens estão ocupadíssimas cuidando de bebês concebidos na adolescência.

Os meninos-traficantes (32,5%) sequer se lembram com que idade deixaram a escola. Um esquecimento refletido nas estatísticas da Vara da Infância e da Juventude. Nos registros de ocorrências entre 1996 e 2000, 30% dos jovens afirmou não saber quantos anos estudou.

Disciplina

Depois de ingressar no tráfico, os índices de abandono escolar aumentam ainda mais. Os entrevistados reclamam de excesso de disciplina na escola, da atitude dos diretores em relação a sua presença e principalmente da falta de ligação entre o conteúdo ensinado e a vida. Pior, afirmam que não conseguem aprender.

Um dado positivo, entretanto, chamou a atenção da OIT. Todos os entrevistados enxergam o trabalho do professor como essencial na comunidade. Mais do que isso, gostariam de permanecer na escola. Costumam, inclusive, ficar na sala de aula quando simpatizam com o professor. ''A figura do mestre é essencial para esses meninos, funciona como um referencial importante e estamos desperdiçando isso'', afirma Pedro Américo. (MO)

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