Meditação para a Quaresma Correio Braziliense Brasília, sábado, 02 de março de 2002 Meditação para a Quaresma Não há salvação para quem vive sozinho, para quem tem sua casa trancada, portas cerradas, janelas batidas. Não há salvação para quem não reconhece o irmão no homem que passa em silêncio pelas estradas da vida Dom José Freire Falcão Na peça dramática Portas Fechadas, Sartre escreveu: ''O inferno são os outros''. Ao que retrucou o filósofo cristão Gabriel Marcel: ''Para mim, o céu são os outros''. Para muitos, o outro é um obstáculo à sua realização pessoal. Vivem como se o outro fosse o mal. Mas, para nós, cristãos, no outro está sempre o irmão, o Cristo. O discípulo de Jesus coloca em seus lábios as palavras de Rosa, personagem da peça dramática de Gabriel Marcel O Coração dos Outros: ''Só há um sofrimento - o de sermos sós''. Não há salvação para quem vive sozinho, para quem tem sua casa trancada, portas cerradas, janelas batidas. Não há salvação para quem não reconhece o irmão no homem que passa em silêncio pelas estradas da vida. O egoísmo é a raiz de todos os males. É o pecado fundamental dos indivíduos e dos povos. Porque na solidão do egoísmo não enxergamos os outros, os povos, o próprio Deus. Somos somente nós mesmos. E são tantos os que passam. Passam os pobres, deste pobre mundo, mendigando o pão. Passam os pobres de virtude e graça, mendigando o perdão. Andrajos de roupas rasgadas. E vestes eternas que o mundo rasgou. Caravanas imensas, compridas, sem fim... despidas de roupas, de amor, de graça. E nós, o que fizemos por eles? Repartimos um pedaço de pano, um bocado de pão? Partilhamos uma palavra de ajuda, de esperança e de conforto com esses pobres da Terra e pobres do Reino de Deus? O que fizemos para vesti-los com as vestes da Terra e as vestes da graça? Augusto Frederico Schmidt, num de seus belos poemas, dialoga com Jesus: ''Senhor, por que não vens comigo e não contemplas A casa dos homens? Ninguém nos verá. Por uma vidraça Descobriremos o mundo dos homens''. Sim. O mundo dos que à hora da ceia, dividem o pão entre si. O pão do alimento e o pão da amizade. E o mundo mais numeroso dos que repartem na mesa da ceia somente preocupações, dores, desesperanças. Já enxergamos, através dos buracos das choupanas, as mesas sem alimentos? Por que não convidamos Cristo para nosso companheiro nessa visita, como faz o poeta: ''Vem, Senhor, contemplar a Tua criatura Tão ameaçada nesta viagem. Vem ver a imagem de Tua criatura, Senhor, Na sua breve noite sobre a Terra''. Nem será preciso convidar o Senhor para esse passeio. Pois Ele está neles, naqueles que ''vemos com fome e damos de comer; com sede, e damos de beber; estrangeiro, e recolhemos; nu, e vestimos; doente ou no cárcere, e fomos ver'' (MT 25, 37-39). Cristo são eles. Mas sem nosso egoísmo não conseguimos enxergá-lo. Se somos ricos de comodismo, de amor próprio, temos olhos turvados. A ninguém vemos. Olhos fechados, percorremos dormindo os caminhos dos homens, que são caminhos do Reino de Deus. E quem não conhece os homens a Deus não descobre. É São João quem o diz: ''Quem não ama, não conhece a Deus porque Deus é amor'' (I Jo 4,8). Se somos ricos dos bens deste mundo, corremos o risco de ser ricos de egoísmo. E pobres de amor. E só o amor liberta, nos faz ver, nos salva. Amor aos mais pobres, aos mais fracos, aos mais abandonados, aos que sofrem, aos que se sentem sozinhos, aos que têm consciência de sua profunda indigência, aos que não alimentam qualquer esperança humana. Pois Cristo veio para eles. Para os sedentos, para os que não se bastam, como lembra admiravelmente outro poeta, Jorge de Lima: ''Vinde os possuidores de pobreza, Os que não têm nome no século. Vinde os homens de contemplação. Vinde os que têm a linguagem mudada. Vinde os forasteiros e vagabundos. Vinde os homens descalços e os que têm Os olhos cheios de espanto. Jesus Cristo - o Rei dos reis Os vossos pés quer lavar, O filho do marceneiro Não vos pode abandonar''. Que seja esta nossa prece nesta quaresma: ''Estou cego, Senhor, fazei-me ver. Que veja nos outros um irmão. E experimente neles o céu. Que minha vida se encha de peregrinos cansados da vida e tristes das duras jornadas de cada dia. E encontrem em mim uma acolhida fraterna!'' Dom José Freire Falcão é cardeal-arcebispo de Brasília © Copyright CorreioWeb Fale com a gente Publicidade. |