Na caneta e na raça

Correio Braziliense

Brasília, quarta-feira,

27 de fevereiro de 2002

Na caneta e na raça

Universidade de Brasília começa a decidir em dez dias se vai adotar sistema de cota racial em seu vestibular. Se aprovada, 20% das vagas de todos os cursos serão destinadas a alunos negros e pardos

Luiz Alberto Weber

Da equipe do Correio

França Júnior, Rafael do Santos e Wilton Santos, alunos da UnB e integrantes do grupo enegrescer, que defende uma ampliação do número de negros no ensino superior  Azul, azulão, café, cor de cuia, encerado, morenão, rosa-queimada, sapecado, sarará e tostado... Essa coleção de tons foi usada por negros que se esquivaram de afirmar a própria cor em questionários aplicados por recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O malabarismo do vocabulário é uma forma de escapar ao preconceito. Afinal, declarar-se negro no Brasil significa, por exemplo, estar preso a seguinte realidade: Ganhar duas vezes menos do que um brasileiro branco; Ter duas vezes mais chance de estar desempregado do que um branco com as mesmas qualificações profissionais;

No próximo dia oito de março, 59 professores e estudantes da Universidade de Brasília (UnB) reúnem-se para tentar, a golpe de caneta, corrigir uma das estatísticas mais desfavoráveis aos negros brasileiros: aquela que registra que apenas 2% dos negros têm diploma de curso universitário.

A reunião do Conselho de Pesquisa, Ensino e Extensão será a primeira para decidir a instituição de um sistema de cotas que vai garantir 20% das vagas de todos os cursos da universidade a estudantes negros e pardos. No último vestibular, foram oferecidas 990 vagas. Se a cota entrar em vigor logo, nos próximos dez anos, período de duração da experiência, quatro mil negros e pardos receberão diploma de curso superior.

Na UnB, a cor dos alunos não guarda relação com a cor da cidade: menos de 1% dos professores e do alunos de pós-graduação são negros. Na graduação, esse índice é de 5% do total de alunos matriculados. Estatísticas oficiais indicam que cerca de 54% da população do DF é parda ou negra.

''Nossa universidade é branca. Brasília é muito mais mestiça e multiracial do que a UnB. Temos que ser uma expressão mais fiel da sociedade e ajudar formar uma classe média negra com formação universitária'', diz o vice-reitor da UnB, Timothy Mulholland, um americano naturalizado brasileiro e defensor das cotas. ''Nunca sofri preconceito aqui na UnB. Mas sinto-me discriminada pelas estatísticas, quando constato que nenhum dos meus amigos negros de colégio ou, até mesmo muitos familiares, não puderam estudar para chegar à universidade'', diz Aida Feitoza, do grupo multiracial EnegreSer, que defende o sistema de cotas.

Falar em cotas (em reserva de vagas para negros, assim como já existe para deficientes físicos nos concursos públicos) é confusão na certa. Um dos mitos nacionais mais duradorouros é o da democracia racial. Popularizado pelo sociólogo Gilberto Freyre, o mito diz que o Brasil é uma sociedade morena onde não existe preconceito de raça. Medidas como as cotas seriam, assim, vistas mais como estopim de uma crise racial que não é típica do Brasil. Cotas não serviriam para facilitar o ingresso de negros nas universidades.

Na academia, há argumentos contrários e favoráveis a reserva de vagas no ensino superior para pessoas de uma raça em particular. Vejamos as principais questões levantadas e os argumentos do dois lados:

1. Não se sabe quem é negro no Brasil

Contra as cotas: Argumentam que entre os negros-negros e os brancos-brancos há uma vasta gama de tons de pele (como os sapecados os encerados citados acima) que ora pode ser remetida ao grupo dos brancos, ora ao dos negros, dependendo do observador e das circunstâncias. É impossível, portanto, definir que candidatos poderão se beneficiar da reserva de vagas.

A favor das cotas: Afirmam que essa questão sobre como definir quem é negro no Brasil, trata-se uma objeção cujo efeito é nada menos do que fazer parar tudo. ''Se não se sabe quem é negro, como promover os negros? Argumento mais paralisante do que esse é o que nega que haja discriminação racial no Brasil'', diz o economista Marcelo Paixão, da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ), autor de estudos sobre diferenças de renda e ensino entre negros e brancos.

2.Cotas são um racismo às avessas e vão estigmatizar ainda mais os negros.

Contra as cotas: O problema com as cotas é a implícita injustiça às avessas, pois o candidato entrará na faculdade pela cor da pele e não devido a sua qualidade como estudante. ''Corre-se o risco de deixar de lado a avaliação do mérito'', diz Peter Fry, professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A favor das cotas: Afirmam que a avaliação ao qual os negros serão submetidos durante o curso de graduação será a mesma aplicada aos brancos. Não serão concedidos diplomas de segunda classe aos negros. Acreditam que - como aconteceu nos Estados Unidos - uma vez matriculados no ensino superior, os negros terão as mesmas médias de notas que os alunos brancos.

3.Basta beneficiar os pobres para beneficiar os negros

Contra as cotas: Argumentam que programas de redução da pobreza e da desigualdade corrigirão essas estatísticas desfavoráveis aos negros. Isso porque, entre os pobres (que seriam beneficiados por essas políticas públicas, como a concessão de bolsas-escola), os negros são maioria.

A favor das cotas: Dizem que se não houver uma clara decisão racial a favor dos negros, o combate à pobreza não vai contribuir a curto e médio prazo para uma redução significativa das desigualdades. A desigualdade é alta e durável no Brasil porque ela tem cor. ''Se você for educar melhor a criança negra de hoje para que ela possa fazer o vestibular, estaria postergando a solução em 11 anos'', diz o economista Marcelo Paixão. Ricardo Henriques, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que em 13 anos os brancos devem alcançar a média de oito anos de estudo. Os negros só atingirão essa meta daqui a 32 anos. Ou seja, só daqui a três décadas brancos e negros conseguiriam concorrer em pé de igualdade a uma vaga no ensino superior público.

A aprovação não é certa. Depois de apresentada no Conselho Universitário, no próximo dia oito de março, os professores levarão a proposta para ser discutida em seus departamentos. Ali, a conversa é outra. Protegidos pelas paredes e diante de um público menor, os professores podem fechar questão contra as cotas.

''Não vai passar. Nós, professores, não podemos ter duas categorias de alunos em nossas classes: um grupo preparado, de brancos, e outro de negros que entraram graças a uma mãozinha'', diz um professor com militância sindical, que prefere o anonimato por temer ser acusado de racista.

''Sou a favor de qualquer medida que altere a ausência de afro-descendentes nas universidades. As políticas tradicionais não vão desarmar o racismo da sociedade brasileira'', diz o secretário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro.

NEGROS NA UNB

14 professores fazem parte do corpo docente, representando apenas 1% do total

40 alunos na pós-graduação são negros, menos de 1% do total

400 alunos da graduação são negros, entre os 20 mil matriculados

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