A IDADE DO NÃO

Correio Braziliense

Brasília, domingo,

10 de março de 2002

Receitas de um pediatra

Dr. Márcio Lisbôa

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A idade do não

''Minha filha tem dois anos e diz não a tudo''. Muitos pais se sentem desorientados, às vezes irritados, com as crianças que só sabem dizer não. Esse é um tipo de comportamento normal nas crianças de 2, 3 anos.

Costumo chamá-las de ''investigadoras'', pois sua curiosidade é ilimitada e estão, o dia inteiro, andando, mexendo nas coisas, subindo, descendo, olhando, ouvindo. No sentido de protegê-las, os pais ou os familiares interferem nessas atividades, o que elas detestam.

Ao tentarem pegar uma barata pelas antenas, lá vem a mãe dizendo: ''Não faça isso! Esse bicho é sujo''. Acham um cigarro no cinzeiro e tentam dar uma tragada; lá vem alguém que grita: ''Não faça isso! O cigarro faz mal''. Tenta subir na cadeira para ver a rua e lhe dizem: ''Não suba aí que é perigoso''. Se abraça um cachorro, avisam: ''Cuidado que ele pode lhe morder''. Se resolve lavar a mão na água da privada, ouve um urro: ''Tira mão daí!''. Além disso, querem que coma com as próprias mãos, large a mamadeira e passe a usar o copo, faça cocô e xixi no penico, etc.

Naturalmente, elas costumam reagir contra essas interferências e as tentativas dos pais e familiares de estabelecer limites, o que representa, para elas, inaceitáveis interferências em suas atividades criativas, de investigação, de autonomia, de independência. Como não têm uma linguagem que lhes permita dialogar, passam a usar o ''não'' com muita freqüência, até mesmo quando deveriam dizer sim, olhando o ''repressor'' de forma desafiadora.   Perguntadas se querem doces, passear no parque, visitar a avó, brincar, dizem que não, embora comecem a chorar assim que percebem que sua recusa foi aceita. Responderam não, mas queriam dizer sim - estão na fase do negativismo. Depois que a criança passa andar e a falar, ela passa a ter um estilo e ritmo de vida cada vez mais independente. Já não é mais o bebê passivo, fácil de ser persuadido, consolado e distraído. Se se lhe retira da mão um determinado objeto e se lhe proíbe de pegá-lo, tenha certeza que ele irá pegá-lo novamente somente para desafiá-lo.

Não quer ir dormir, tomar banho, escovar os dentes, cortar cabelo, ir ao médico. Parece achar que a sua independência depende de fazer o oposto do que os seus familiares querem ou pedem. Esse comportamento significa o desejo da criança de ser ela própria. O negativismo é um dos aspectos do desenvolvimento infantil e deve ser interpretado como um sinal de independência, e não necessariamente como uma forma de contrariar, de rebeldia ou tentativa de impor sua vontade, como boa parte dos adultos credita.

Infelizmente, a ignorância desse fato faz com que muitos pais não aceitem esses comportamentos, que interpretam como desafiadores de sua autoridade e reajam com confronto, raiva, punições e até castigos físicos. Cabe aos pais educar seus filhos, estabelecer limites, disciplinar com compreensão, carinho e paciência. As crises de birra e de choro, tão comuns quando essas crianças são contrariadas, não poderão intimidá-los e impedir que eles cumpram o seu papel disciplinador, evitando usar punições.

Para impedir o emprego do ''não'', os adultos devem fazer perguntas que não possibilitem a resposta não. Em lugar de perguntar ''Você quer passear?'', ''Você quer tomar suco?'', ''Você quer ir dormir?'', dizer ''Vamos para a cama'', ''Vamos tomar banho'', ''Está na hora do almoço''. Os adultos também erram ao obrigar as crianças (ainda mais aquelas que têm entre 1 e 4 anos) a obedecer os seus gostos ou vontades, contrariando-as por qualquer coisa. Não deixem as crianças andarem descalças em casa; obrigam-nas a usar: o vestido verde para ir à escola (elas gostam do branco); tênis (querem sandálias), a roupa de banho que a vovó deu (elas detestam); tomar banho à noite; usar o suéter vermelho em dias em que a mãe acha que está frio; não arrastar cadeiras; não arrastar cadeiras; não ligar a televisão.

A independência deve ser encorajada e esses acontecimentos freqüentes e sem importância no dia-a-dia não devem ser motivos de interferências. As restrições e o estabelecimento de limites serão utilizados quando indicados. Se não for assim, corre-se o risco de criar crianças que vivam na defensiva, medrosas, incapazes de argumentar com os pais, professores e outras pessoas, ou ao contrário, criá-las extremamente agressivas. Ser paciente, por maior que seja o cansaço, é imprescindível para cuidar dessas crianças, pois as negativas não são dirigidas contra os pais, não têm a intenção de agredi-los ou desafiá-los; fazem parte do seu desenvolvimento normal.

Um último conselho: não tente imitar seu filho passando a dizer ''não'' a tudo que ele pedir.

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