Menor infrator, licença para matar

FLÁVIO CÉSAR DE TOLEDO PINHEIRO

Tanto a Constituição da República, no seu artigo 228, como o Código Penal, no seu artigo 27, dispõem que "os  menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial".

É o "fator  biológico" que determina a inimputabilidade, de forma absoluta,  significando que o menor de18 anos é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento.

É o menor de 18 anos então equiparado, para fins de isenção de pena, ao   maior doente mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado,  na situação descrita no artigo 26, do Código Penal.

Portanto,  para  o  menor  de  18 anos, a presunção de inimputabilidade é   absoluta.  Mesmo em se tratando de um menor comprovadamente inteligente e com  plena  capacidade  intelectiva  e  volitiva não responderá por crime nenhum.

Todavia,  esse  menor  responderá  pela  prática  de fatos definidos como   infrações penais, na forma disciplinada pela Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Em  suma,  essa  é  a  situação do menor, na área penal, considerando-se,   ainda,   que  "criança"  é  o  ser  humano  até  12  anos  incompletos e  "adolescente",  aquele entre 12 e 18 anos de idade (Estatuto da criança e  do Adolescente, art. 2.º, "caput").

Assim,   verificada  a  prática  de  infração  por  parte  de  um menor,   consistente  numa conduta positiva ou negativa descrita como um "delito", contrária  ao  direito  ou antijurídica, o juiz competente aplicará a ele medidas  que  vão  da simples advertência à internação em estabelecimento educacional.

O  artigo  121, @ 5.º, do Estatuto da Criança e do Adolescente determina,   porém,  que  a  liberação  será compulsória aos 21 anos de idade, como se fosse  possível, em tão pouco tempo, a recuperação do menor delinqüente e sua reintegração na sociedade.

Essas  são  as regras básicas que disciplinam a conduta do menor no campo   penal, partindo do pressuposto constitucional de sua inimputabilidade.

Mas  fica  difícil  entender  como  pode  esse menor inimputável possuir,   constitucionalmente,  direito  político  ativo,  vale  dizer, capacidade eleitoral ativa.

Como pode  um  inimputável  penal  votar  em  eleições,  plebiscitos e   referendos?

Pois bem.

Pela  Constituição  da  República o voto direto e secreto tem igual valor para todos (art. 14).

Mas  como  pode  o  voto  ser  igual  para  todos  se  o  maior, capaz e   responsável, não é igual ao menor incapaz e inimputável?

Se  esse  voto igualitário reflete o valor da isonomia consagrado no art. 5.º  da Constituição Federal ("todos são iguais"), como pode o voto de um cidadão  brasileiro,  maior e capaz igualar-se ao voto de um inimputável?

Ambos seriam iguais?

Raciocinando  logicamente:  se  os  maiores  de  16 e menores de 18 anos,   segundo  o  artigo 14, @ 1.º, "c", da Constituição da República, podem se alistar  e  votar,  porque  constitucionalmente  são  iguais  aos outros brasileiros maiores de 18 anos, não poderiam esses menores de 18 anos ser considerados penalmente inimputáveis.

Se  houve  inovação, por iniciativa do senador Afonso Arinos no que tange ao  voto  facultativo  dos adolescentes, por que tanta resistência no que diz respeito à imputabilidade penal do menor infrator?

Efetivamente,  na  atualidade deste mundo moderno, repleto de informações   cotidianas,  não  tem sentido presumir, de forma absoluta, que o menor de 18 anos seja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de  determinar-se  de  acordo  com esse entendimento. Assim, seria irreal equiparar esse menor a um doente mental. Qualquer estudante de Direito ou  de  Psicologia  sabe  que  o  menor (de 16 a 18 anos) é mentalmente são e desenvolvido  e,  portanto, capaz de entender o caráter lícito ou ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento.

A  esse  menor,  portanto,  manda  a  realidade  da  vida  que se atribua   responsabilidade pela prática de atos infracionais.

Assim,  esse  menor,  na  faixa  dos  16 a 18 anos de idade, deve ser tão   imputável  penalmente como qualquer adulto e, em conseqüência, sujeito às normas  estabelecidas  no  Código Penal e não mais à legislação especial, aplicar-se-ia  obrigatoriamente  a regra do artigo 26, do estatuto penal, ou  seja, poderia ser considerado inimputável numa situação em que o juiz determinasse  a  sua  internação  (periculosidade  presumida),  se a pena   abstrata prevista para o crime não for de detenção.

Esse  prazo  de  internação não mais seria pelo máximo de três anos, como   determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (como se o prazo de três anos  fosse  suficiente  para  recuperar  um  autor de roubo, latrocínio, estupro  e  outras figuras mais graves), mas sim por tempo indeterminado, perdurando  enquanto não averiguada, mediante perícia médica periódica, a cessação de periculosidade.

Essa   reclusão   ocorreria   numa  casa  especial  de  tratamento  e de   recuperação,  somente para menores infratores, ou em unidades da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem).

Não  adianta  mais  fingir  ou  encarar  o menor infrator como uma figura   virtual.

Existe  o  menor  delinqüente,  ou  melhor, infrator, perigoso, homicida,   latrocida,   estuprador   ou   autor  de  outras  infrações  hediondas e   repugnantes.

No  seu  interesse,  no da sociedade, permaneceria esse menor infrator em   tratamento até que uma perícia médica viesse dizer sobre sua recuperação.

Por  mais  longo  que  possa  ser o prazo de internação, só a perspectiva   dessa  ameaça,  o receio dessa possibilidade funcionaria como elemento de inibição  de  forma  a  criar  no  menor  uma  resistência íntima a novas práticas  infracionais. Por que delinqüir se corro o risco de ficar preso por  mais  de  20  anos?  O certo é que, pelas leis atuais, o menor pensa assim:  vou roubar e matar quantas vezes quiser, porque, quando completar 21 anos de idade, vou pra rua.

De  que  forma  poder-se-ia assegurar ao adolescente infrator o direito à vida e à dignidade, como manda a Constituição da República (art. 227)?

Tratando-o   convenientemente,   pelo   tempo  que  for  necessário para   devolvê-lo à vida familiar e social para que, efetivamente, possa exercer a cidadania.

Como está, liberando-se o menor infrator aos 21 anos de idade,   compulsoriamente,  é uma farsa, uma crueldade, um arremedo e um simulacro de  tratamento.  Uma peça teatral burlesca onde o menor infrator é o ator mais  prejudicado.  E  o  diretor disso tudo, o mais medíocre. Mas haverá sempre uma platéia aplaudindo.

  Flávio César de Toledo Pinheiro é desembargador do Tribunal de Justiça do   Estado de São Paulo.