ALCA E FMI

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Segundo se estabeleceu na cúpula de  Québec, em abril de 2001, as negociações da Alca (Área de Livre Comércio das  Américas) devem ser concluídas até janeiro de 2005. E o acordo entrará em vigor  até dezembro de 2005. O novo governo brasileiro não terá, portanto, muito tempo  para respirar. Como comecei a explicar no artigo da semana passada, as  negociações da Alca têm implicações que a maioria dos brasileiros desconhece. A  agenda formulada pelos EUA é ampla e inclui não só a remoção de barreiras ao comércio de bens mas temas como serviços, investimentos, compras governamentais,  propriedade intelectual, entre outros. Se a Alca for concretizada, o Brasil  sofrerá grave perda de autonomia decisória. Tão abrangente é a agenda da Alca  que não há exagero na afirmativa de que ela inviabiliza a formulação e a  implementação de um projeto nacional de desenvolvimento -algo que está presente  nas propostas de todos os principais candidatos à Presidência da  República. Um deles prometeu recentemente incentivar a produção e a geração  de empregos no Brasil por meio da política de compras governamentais, orientando  os órgãos e as empresas públicas a conferir prioridade aos fornecedores domésticos  de bens e serviços. Pois bem. Esse é um dos instrumentos que os EUA querem  proibir ou restringir drasticamente dentro da Alca. O governo dos EUA pretende que, para uma ampla gama de contratos de compras governamentais, qualquer fornecedor de bens e serviços de um outro país da Alca receba o mesmo tratamento  que os fornecedores do país. Os EUA querem, também, proibir a incorporação,  nesses contratos, de cláusulas que especifiquem níveis de conteúdo doméstico,  licenciamento de tecnologia e compromissos de investimento. No que se refere  à propriedade intelectual, os EUA pressionam pela inclusão de obrigações que vão  além das assumidas no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio), o que  implicaria mudanças significativas na legislação nacional dos demais países da  Alca. Querem, por exemplo, limitar as circunstâncias em que os países da Alca  podem recorrer ao licenciamento compulsório, isto é, à utilização de um produto ou processo patenteado sem o consentimento do detentor da patente. A recente  vitória do Brasil na questão das patentes dos remédios contra a Aids teria sido  provavelmente impossível se a Alca já existisse. Na área de serviços, os  planos norte-americanos também são ambiciosos. Se prevalecer a vontade dos EUA,  a Alca incluirá, em princípio, a liberalização do comércio para todos os tipos  de serviços. Desejam os EUA que o acordo cubra medidas tomadas por governos  centrais, regionais ou locais, assim como por órgãos não-governamentais que  exerçam poderes delegados por esses governos. Por outro lado, os EUA excluem da  Alca as políticas de imigração e o acesso aos mercados de trabalho. Em outras  palavras, os EUA querem que a Alca garanta a liberdade para os investimentos e  para o comércio de bens e serviços (com as ressalvas e exceções destinadas a  proteger os setores pouco competitivos da sua economia), mas não aceitam nem  discutir a livre circulação de trabalhadores. Obviamente, a posição  negociadora do Brasil fica prejudicada pela crise cambial e a negociação com o  FMI. Não há, em tese, ligação formal entre a negociação da Alca e a do FMI. Não  faz parte do mandato desse último estimular ou forçar a realização de acordos  regionais de livre comércio. Não obstante, sabemos que o FMI é controlado  pelos países desenvolvidos e que os EUA detêm não só a maior quantidade de votos  mas também poder de veto. Como observou o economista norte-americano Barry  Eichengreen, isso tem permitido que "o governo dos EUA use o FMI como  instrumento de sua política externa". O FMI é um ardoroso defensor da  independência dos bancos centrais. Ele próprio, entretanto, é uma autoridade  monetária rigorosamente dependente dos governos que o controlam, particularmente o dos EUA. Há muitos episódios em que os EUA não tiveram escrúpulos de se  valer do FMI como alavanca dos seus objetivos nacionais, inclusive no terreno comercial. Larry Summers, secretário do Tesouro dos EUA no governo Clinton, foi  bastante explícito sobre esse ponto em mais de uma ocasião. Em fevereiro de  1998, por exemplo, comentou que "o FMI tem feito mais para promover a agenda  comercial e de investimento na Coréia do que 30 anos de entendimentos comerciais  bilaterais". Em janeiro de 1999, Summers revelou que foi por pressão direta do  governo dos EUA que o texto do acordo do Brasil com o FMI, assinado em fins de  1998, incluiu o compromisso de prosseguir com a política de liberalização e  integração comercial. Em resumo, no campo das negociações econômicas  externas, assim como em tantos outros, Fernando Henrique Cardoso deixa para o  seu sucessor um legado extraordinariamente problemático.

Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante  do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-SP.É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002). E-mail - pnbjr@attglobal.net