Razões de outubro

CRISTOVAM BUARQUE

Por que, depois de 500 anos de poder elitista, desprezo ao povo, arrogância aristocrática e perversidade social, o Brasil elege um presidente filho do povo, retirante nordestino, operário metalúrgico, líder sindical e militante de esquerda?

Lula foi eleito porque a esquerda está arrependida dos seus erros e a direita envergonhada de seus êxitos. A esquerda se arrepende dos equívocos que a fizeram perder o poder conquistado em alguns países, como Chile; do poder mal administrado, como no Leste da Europa; e das derrotas colecionadas em tantas tentativas frustradas de revoluções e eleições.

A direita sente remorso de suas conquistas: um mundo rico e dividido pelo apartheid econômico, degradado pela crise ecológica, que assiste envergonhada ao genocídio na África, à pobreza nas esquinas de suas cidades, à droga consumindo seus filhos; e que não consegue esconder que a destruição do comunismo jogou a URSS no crime e na pobreza. Lula chegou ao poder porque a direita brasileira perdeu a capacidade de iludir os eleitores, e porque a esquerda soube corrigir suas próprias ilusões.

Em 1822, a elite iludiu o povo prometendo a Independência com um imperador filho do rei da metrópole. Fez a abolição da escravidão sem dar escola nem terra, e a população negra agradeceu iludida. Um ano depois, proclamou a República, substituindo os condes pelas excelências, e a plebe pelo povão, mas o povo acreditou que estava elegendo o "seu" presidente.

No século XX, a elite desenvolveu a economia prometendo enriquecer a todos depois que o produto crescesse. A pobreza persistiu, mas o povo esperava e agradecia migalhas. Recentemente, prometeu que a abertura comercial e a privatização levariam todos os brasileiros ao paraíso do consumo. E durante alguns anos os brasileiros continuaram acreditando. Mas as ilusões acabaram. As mentiras da elite construíram um monstro social e esgotaram seu baú de ilusões sociais.

A primeira causa da vitória de um metalúrgico de esquerda para a Presidência decorre da incapacidade de a elite brasileira continuar oferecendo ilusões ao povo brasileiro. Até o candidato da elite era um militante com tradição de esquerda.

A segunda causa da vitória do Lula foi a reciclagem da esquerda. Lula não teria sido eleito se, ao lado da falta de ilusórias propostas da direita, o PT não fosse hoje um partido espalhado por todo o pais, passando por experiências administrativas em governos estaduais e municipais, um partido realista, com credibilidade. Lula não ganharia se o discurso da esquerda continuasse prisioneiro de suas próprias ilusões e preconceitos que levaram ao fracasso no passado, em nome de utopias impossíveis.

O PT vitorioso representa hoje a continuação da tradição idealista do passado, mas também uma ruptura olhando para o futuro do mundo real. Mas, o fim das ilusões da direita e dos erros da esquerda não seria suficiente para eleger um presidente se não tivéssemos um líder carismático capaz de inspirar credibilidade e competência. Lula passa estes sentimentos: o povo, inclusive a elite, o respeita e confia nele.

Juntos, uma direita esgotada, uma esquerda renovada e um líder preparado construíram as condições para que, pela primeira vez, o Brasil tenha um presidente popular, com origem, cara e nome do povo, com propostas voltadas para o povo.

Mas para que o Lula ganhou, se não vai fazer a revolução que a esquerda tradicional defendia, nem tem o direito de apenas administrar a crise como se fosse um recém-chegado membro da elite?

O Lula ganhou para inventar uma soberania compatível com a globalização, para retomar o crescimento econômico e estabelecer formas de distribuir a renda, recuperar a infra-estrutura. Ganhou para quebrar o corporativismo e criar um sentimento comum de nação e uma mística para nosso futuro. Ele ganhou, sobretudo, para completar a Independência, a Republica, e realizar a verdadeira Abolição, a da pobreza.

Lula ganhou para ser o presidente que fará a segunda e verdadeira abolição. Tomando de imediato as medidas para garantir que, dentro de poucos anos, o Brasil seja um país sem exclusão social, onde todos tenham acesso aos bens e serviços essenciais. Lula foi o primeiro presidente que, no dia de sua vitória, assumiu o compromisso com a erradicação da fome no país: de comida, mas também de educação, de cultura, de honestidade, de soberania, de moradia, atendimento de saúde, equilíbrio ecológico, de auto-estima.

Para isso, ele tem de fazer com o nome Silva e as mãos do povo o que uma princesa Bragança não fez: completar a abolição.

CRISTOVAM BUARQUE é professor da UnB/CDS.

(publicado anteriormente em O Globo)