ALÉM DO AMOR

 

Publicado no Diário de Pernambuco, 28/11/2002, p.A-3:

ALÉM DO AMOR

Tereza Halliday

Jornalista e analista de discurso

Plenamente qualificados para o Guiness Book of Records,  Lúcia e Mário Lacerda de Melo  comemoraram, este mês, 60 anos de casados.   A notícia da cerimônia de 1942 deve ter saído nos jornais como "o enlace matrimonial da interessante senhorinha Lúcia Coutinho Tavares de Moura com o jovem professor" etc. Fosse hoje,  a coluna social noticiaria o fato como o Dia D dos noivos. Metáfora esquisita, pois a expressão original designa a data do desembarque das tropas aliadas na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial. Aplicada a casório, só faz sentido como abreviatura de Dia Deslumbrante, Dia Decisivo, Dia Divino ou Dia Desastroso. Com Lúcia e Mário, foi Dia Dadivoso, caso de amor explícito.

A palavra-chave dos casamentos está na expressão antiga: enlace matrimonial. Enlaçar significa "prender com laços", não apenas afetivos, como se espera, mas familiares, econômicos, sociais - aquele bando de obrigações que  atentam contra as curtições do casal e dos indíviduos que o compõem. É aí que a porca torce o rabo. O enlace vai  muito além do amor implícito.

Enlace quer dizer "união por meio de aliança". Os nubentes se aceitam como aliados - combatentes lado a lado por uma causa comum, que muitos pensam ser a felicidade. Além do amor, nascem expectativas: o bem-estar individual, gozar a vida, criar  filhos, melhorar de vida, ter companhia e apoio. Não pode ser uma aliança fuleira, como a de partidos políticos para alcançar o poder ou não largá-lo. É aliança que deve resistir ao mínimo frio ou fria,  ao primeiro conflito de interesses,  a mais de uma decepção. Por não ser fácil, há muitas  alianças partidas, de antigas princesas e príncipes encantados que viraram sapos e monstros nas bocas amargas dos "ex".  Mas ninguém se enlaça matrimonialmente sem alguma esperança de que vai dar certo.

Quando dá certo por 60 anos, é um Nossa!, um Puxa vida!  O casal é festejado com espanto:  como é que pode? Aguentar o mesmo homem, a mesma mulher pelo resto da vida?  Dando certo, não é "aguentar", é receber o outro, pela vida adentro.

Muitos  perguntaram a Lúcia e Mário:  qual é a receita? Além do amor, eles devem ter lá seus ingredientes secretos, inclusive   anjos da guarda com poderes diplomáticos excepcionais para protegê-los e defendê-los, até a velhice, do trauma de uma separação. Anjos que acumpliciam sob suas asas companheirismo e ternura a longuíssimo prazo. Mas uma coisa é certa: o amor não basta - como disse minha confreira gaúcha Martha Medeiros, em crônica que deveria constar das apostilas dos cursos para noivos. (In Trem-Bala, Ed. L&PM). Além do amor implícito e explícito, é  preciso jogo de cintura, saber calar, saber falar, respeitar os limites e limitações, construir um enorme estoque de paciência e tolerância, tão raras quanto caras. E, quando o casamento não acabar, prosseguir segurando a mão um do outro.

terezahalliday@hotmail.com