EMIGRAÇÃO INTERNA

                                                                            

 

Publicado no Diário de Pernambuco, 20/03/2003, p.A-3:

"EMIGRAÇÃO INTERNA"

                                                                             Tereza Halliday

                                                                  Jornalista e analista de discurso

No Livro de Ocorrências do meu bairro, registrei a presença de um bem-te-vi entoando sua frase melódica tradicional. Dava a sensação de que o mundo está em paz e segue seu curso como deve ser.  Mas, lá na esquina, alguém recebeu tiros, compassados e audíveis como o canto do bem-te-vi. Não importa se foi assalto ou desafeto. Receber tiros é muito pesado. O canto do bem-te-vi é leve como ele mesmo.  E surpreende pensar que ambos se inserem na ordem/desordem do universo. O bem-te-vi bem que viu os tiros do assaltado reagindo ao motoqueiro assaltante. Por isso, bateu asas e calou.

Um dos colibris do quarteirão foi flagrado encostando o bico numa flor, tremelicando as asas, alheio ao peso do mundo. Com um beijo, obteve da flor o que lhe faltava. Mas, logo abaixo da varanda, na calçada, outro ser da Criação encostava o revólver no queixo do passante-pessoa-cidadão-contribuinte. Com um antibeijo, obteve do seu semelhante, nada assemelhado, o que lhe apetecia: carro, carteira, celular. Cenas quase simultâneas, acontecidas ao meu redor de cada dia, protagonizadas por pássaros e gente.

Beleza de passarinho não se explica. E violência de gente? Tiros e quedas tornaram-se o feijão com arroz do espaço público, enquanto os governantes de plantão fazem o possível,  tomam aspirina e pensam nas próximas eleições. Os cidadãos, atônitos e acuados, perguntam: "Como é que pode?". E todos fazem coro: "É um absurdo!".  Testemunhas do quotidiano tentam compreender:  poetas, aparvalhados,  só enxergam e traduzem  vôos de pássaros e de pensamentos. Seu olhar sobre o mundo é vesgo mas necessário.  Comentaristas, desnorteados, denunciam e analisam. Sua voz é necessária mas insuficiente.

Bem-te-vis e colibris merecem troféu de agentes da beleza do mundo, contrapondo-se aos agentes da crueza, que resolvem conflitos e desejos com armas - em bairros e países.  Deixo as cruezas para a cobertura jornalística e as vilezas para a crítica especializada.  Leio  poemas e contemplo passarinhos, para a alma agüentar a marcha forçada do viver nesta cidade, país e planeta, cuja melhoria  só aparece em sonho.

Hannah Arendt escreveu sobre a banalidade do mal e ressaltou o bem ao traçar  perfis de pessoas do século 20 que  iluminaram tempos escuros - se é que já os houve claros. Entre elas, Karl Jaspers, Rosa Luxemburgo, João XXIII. No livro Homens em Tempos Sombrios (Cia. das Letras), Arendt fala de tempos em que somos forçados a uma "emigração interna" - mudar-se para dentro, como  via de sobrevivência, cultivar a vida interior, da mente e da alma, embora ligados no mundo que nos cobra e nos deve.

Em minha bagagem de emigrante interna, além dos livros, do computador e dos afetos, levo um beija-flor e um bem-te-vi para inspirar outros artigos.  Como Hannah Arendt, bem sei que, o que eu escrever "pode chocar pessoas boas e ser distorcido pelas más". terezahalliday@hotmail.com

 

TEREZA LÚCIA HALLIDAY, Ph.D
Criação, Aperfeiçoamento e Consultoria de Textos
www.terezahalliday.com
Fone/Fax: 0-XX-81-3341-5286
E-mail:terezahalliday@yahoo.com
Rua Setúbal, 1700/901 - 51130-010 Recife, Pe.

"Palavra quando acesa, não queima em vão".