O PRIMO POBRE DO TRABALHO

Publicado no Diário de Pernambuco, 10 de maio 2003, p.A-3.

Tereza Halliday

Jornalista e analista de discurso

Trabalho é processo de criação manual, mecânica ou intelectual, cujo resultado costuma ser durável, por meses, anos ou séculos.  Labor é ocupação, geralmente manual, cujo efeito não dura mas é necessário: "É típico de todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido tão depressa quanto o esforço é dispendido.  No entanto, este esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência".  Essa premência, descrita por Hannah Arendt em A Condição Humana,  impele a tarefas não pagas e  serviços remunerados, imprescindíveis ao bom funcionamento da vida quotidiana.

Quando vejo reuniões profissionais ou festivas, médicos e padeiros de batas impecáveis, gente sizuda ou sorridente na TV, penso no quanto de labor é requerido para que estejam "apresentáveis" - da roupa lavada, sem botões faltando, à camisa engomada, aos sapatos engraxados.  A ordem doméstica ou empresarial que serve de suporte a todas  essas pessoas em seu ir e vir, é feita de labor:  limpeza, lavagem e arrumação contínuas, de chão, móveis, lençóis,  toalhas, roupa íntima, sanitários, pias, copos, pratos, lixeiras. E os alimentos cortados, descascados, cozidos - tudo requerendo algum esforço até ficarem prontos para usar.

 Arendt comenta: "a luta que o corpo humano trava diariamente para manter limpo o mundo e evitar-lhe o declínio tem pouca semelhança com feitos heróicos; a persistência que ela requer para que se reparem, dia a dia, os danos de ontem, não é coragem, e o que torna o esforço tão doloroso não é o perigo, mas a implacável repetição". Os que se ocupam  da limpeza do mundo sabem o que é isso.  E constatam que sua labuta só é lembrada com reclamações, quando as conseqüências de sua falta se fazem notar pela desordem e/ou mau-cheiro, desconforto ou insalubridade que preenchem os lugares onde a tarefa deixou de ser feita.

Apesar da distinção arendtiana entre labor e trabalho,   pertencem à família Trabalho  os atos laborais  para manter limpos o nosso corpo, os dos animais, crianças e idosos sob nossos cuidados, utensílios do dia-a-dia, e os  espaços privados e públicos por onde circulamos. Somos uma mescla de animal laborans e homo faber, não duas castas de afazeres estratificados por status e renda, como certas crianças, ricas e pobres, aprendem erradamente, despreparando-se para a vida, ao desdenhar o labor.

Todos precisamos do nosso próprio labor e  dependemos dos que laboram em casa, escolas, fábricas, hospitais, escritórios e ruas  para que possamos viver na dignidade da limpeza. Por isto, neste feriado  em que se homenageia os trabalhadores do mundo - unidos ou desunidos -  reconheçamos o imenso valor deste primo pobre do trabalho: o labor.  Assalariado ou voluntário, é ele que evita o declínio dos espaços, "repara os danos de ontem" e cria as condições para um quotidiano normal.  terezahalliday@hotmail.com

Tereza Lúcia Halliday, Ph.D

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