A Consciência do Corpo - Entrevista a António Damásio

Entrevista a António Damásio

A consciência do corpo

Desidério Murcho

Depois de O Erro de Descartes, que constituiu um inesperado êxito no nosso país, o cientista António Damásio, radicado nos EUA, enfrenta um dos mais intrincados problemas da filosofia e das ciências da cognição: a consciência. É esse o tema do seu último livro, recentemente publicado nos EUA, onde foi entusiasticamente recebido pela comunidade académica, estando a ser traduzido para 17 línguas. A versão portuguesa acaba de sair na Europa-América e tem por título O Sentimento de Si: O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Fui falar com o autor.

Que factores o conduziram ao problema da consciência?

Para mim o problema da consciência foi sempre importante e interessante. Na altura em que estava a fazer a investigação que conduziu ao Erro de Descartes a questão que eu considerava mais vexante em matéria de ciência era o facto de ser difícil compreender — no que dizia respeito especificamente às emoções — como é que se sabe que se tem uma emoção. Há um capítulo no Erro de Descartes em que eu me refiro a esse problema, dizendo que julgo compreender como funcionam a emoções e que julgo compreender em parte como funciona o sentimento, do ponto de vista neurobiológico, mas não consigo compreender como é que sei que tenho uma emoção ou um sentimento. E esse parece-me ser um problema crítico.

Assim, cheguei ao problema da consciência muito directamente porque não conseguia acabar de resolver os problemas que tinha com a emoção. Apesar de ter pensado durante muito tempo que nunca iria escrever sobre a consciência, por ser uma perda de tempo e por isso me fazer entrar em discussões que iriam criar controvérsia e que não resolveriam o problema, acabei por achar que era um desafio necessário. Já na altura do Erro de Descartes tinha muitas das ideias que apresento agora neste livro, mas não estavam tão amadurecidas. E na altura não discuti propositadamente muito mais o problema da consciência porque não queria distrair o leitor da questão principal que era o da relação entre a emoção e a decisão. Neste livro desenvolvo a ideia original de que as emoções fazem parte de um grande sistema de regulação biológica e que este sistema está intimamente ligado à emergência da consciência.

Como vê as relações entre o seu trabalho científico e experimental e a filosofia, já que os problemas da mente-corpo e da consciência têm sido dos mais discutidos em filosofia?

É uma relação extremamente estreita. Não há dúvida que grande parte da filosofia passou para a ciência. Isto é perfeitamente natural dado que o que a filosofia começou por ser é tudo aquilo que ainda hoje é, mas também tudo aquilo que a ciência hoje é.

Em relação às ciências cognitivas, a todo o campo que hoje está incluído na neurociência ou na neurobiologia, a filosofia continua a ser essencial. Em primeiro lugar, para fazer a relação entre o que fazemos hoje em dia na ciência e o modo como as mesmas questões têm sido tratadas pela filosofia. Em segundo lugar, porque há problemas de relação geral entre cérebro, mente, biologia (no sentido geral), ciências sociais, cultura, física… há uma complexidade cada vez maior porque todas as ciências continuam a produzir resultados. A filosofia vai ter o papel de ajudar a organizar o campo intelectual e ajudar a fazer a crítica da forma como as várias soluções são apresentadas. Não há, pois, qualquer risco de a filosofia desaparecer; vai continuar a ser necessária.

Do seu ponto de vista, a consciência é um mecanismo biológico, fruto da evolução natural. Significa isto que a ideia tradicional e religiosa de uma alma incorpórea que de alguma maneira escapa às leis da natureza não passa afinal de uma quimera? Como é que vê exactamente as relações entre a mente e o corpo?

Aquilo a que chamamos "mente" é uma colecção de processos biológicos. E, dado que estes processos são físicos, a mente é necessariamente um processo físico. Mas é preciso pensar que a física desses processos biológicos não é necessariamente a física corrente. Ter uma mente em funcionamento não é o mesmo do que ter um pedaço de mármore. Um dos grandes problemas que as pessoas têm é que quando pensam em matéria, quando pensam em qualquer coisa de físico, a imagem a que recorrem é a do cimento, da parede, da pedra, do pedaço de metal. E é evidente que o processo mental — é um processo, note-se, um constante desenrolar de acontecimentos, e não uma coisa — não pode ser concebido como esse tipo de matéria.

Uma das coisas mais curiosas que está a acontecer é uma modificação da forma como os físicos concebem a matéria. A matéria não é apenas cimento e pedra, é também energia e fluxos. Assim, o nível de fenómeno biológico em que se desenrola a mente é de um nível físico que ainda está por definir completamente. O que lhe posso dizer é que tenho a convicção que há uma matéria do pensar, da mente consciente, matéria essa que é biológica e altamente complexa, que está ligada ao funcionamento de redes nervosas — e que permite a própria perspectiva da primeira pessoa — e que nada tem a ver com a nossa concepção da matéria e dos objectos de pedra e cal e aço que temos à nossa volta.

A sua teoria parece refutar alguns argumentos filosóficos anti-fisicalistas que se apoiam na ideia de que os qualia e a perspectiva da primeira pessoa são insusceptíveis de serem cientificamente tratados.

Esses pontos de vista têm a ver com um período diferente do desenvolvimento da neurociência. Claro que há imensas pessoas — tanto da neurociência como da filosofia — que concordariam com esses argumentos. Mas nos capítulos do meu livro em que falo da experiência mental da neurocientista Mary ["What Mary Didn’t Know", de Frank Jackson], pode ver como este exemplo não funciona. Há um erro de lógica na experiência mental de Mary. A ideia de Mary poder saber tudo quanto é possível saber sobre a biologia da cor e de mesmo assim não ser capaz de ter experiência da cor é perfeitamente coerente; a experiência da cor depende de um outro tipo de conhecimento, de outro tipo de fenómeno biológico que nada tem a ver com o nosso conhecimento externo como cientistas e como filósofos daquilo que é a neurobiologia da cor. O argumento da Mary é muito curioso porque algumas pessoas que concordavam com ele passaram a achar que está errado, depois de terem lido o meu livro. É simpático ver que as coisas mudam, que as pessoas podem aceitar a mudança de opinião.

Julgo que tudo depende da perspectiva. Como pode ver no meu livro, respeito a perspectiva interior. Não há dúvida que a nossa mente e que a consciência são fenómenos privados e internos. Isto é perfeitamente compatível com uma ligação entre esses fenómenos de primeira pessoa e os fenómenos de terceira pessoa que decorrem da nossa observação de comportamentos. O que é preciso é manter uma visão dupla dos fenómenos — aquilo que é interior e aquilo que é exterior. Mas o facto é que eles estão ligados. Tudo aquilo que você tem do ponto de vista interior e que não é revelável ou visível para mim tem uma tradução, por vezes extremamente subtil, em fenómenos visíveis na perspectiva da terceira pessoa. Alguns desses fenómenos são comportamentais, outros podem revelar-se na análise de fenómenos que podemos fazer com um scanner ou um electroencefalograma. Tudo isso são manifestações de uma outra coisa; mas não são essa coisa. Como digo várias vezes no livro, olhar para o electroencefalograma de uma pessoa que está a pensar um determinado pensamento é diferente de olhar para esse pensamento. Não podemos olhar para o pensamento, mas podemos olhar para uma manifestação que está correlacionada com ele. O grande desafio da ciência actual é fazer esta triangulação entre certos índices de funcionamento biológico, de certos comportamentos visíveis exteriormente, e essa outra coisa que é a primeira pessoa, que é a nossa própria experiência.

Um dos dogmas de alguma da filosofia do século XX tem sido a ideia de que sem linguagem não há pensamento. Esta ideia parece também decisivamente refutada por alguns resultados experimentais apresentados no seu livro.

Exactamente. E, sobretudo, a ideia de que a consciência é uma consequência da linguagem parece-me estar completamente errada e há neste momento, entre os dados experimentais e a reflexão sobre esses dados, razões para a esquecer rapidamente. O que não há dúvida é que os níveis mais elevados de consciência, aquilo a que chamo "consciência alargada", necessitam de linguagem. Mas mesmo assim estou convencido de que há seres não humanos com consciência alargada que não têm qualquer linguagem e que organizam a consciência de uma forma não verbal.

É compreensível que as pessoas tenham pensado que a linguagem é necessária para a consciência. Apesar de a linguagem ser um dos processos mais complexos a nível biológico é evidentemente um grande fenómeno de comunicação, o que nos faz sentir que quase tudo tenha de passar pela linguagem porque nós usamos a linguagem para chegar aos pontos mais altos do nosso raciocínio e da nossa criatividade. Veja aliás como é irónico que a neurociência tenha começado exactamente pela linguagem. A neurociência começou pelo estudo da relação entre o cérebro e a linguagem. Isto é espantoso. A neurociência não começou por estudar fenómenos simples, não começou pelos neurónios; quase que se pode dizer que começou pelo ponto mais alto, que são os fenómenos da linguagem. Isso deu a ideia falsa de que tudo provinha da linguagem.

Outro exemplo desta curiosa distorção, de que também falo no livro é a seguinte: quando se pensa na marcha do conhecimento é óbvio que sabemos muito mais sobre a consciência moral, do ponto de vista biológico, filosófico e das ciências sociais, do que sobre a consciência cognitiva. Curiosamente, o nosso conhecimento marcha muitas vezes no sentido menos previsível. Começamos por compreender coisas muito, muito complexas e depois, a pouco e pouco, vamos chegando às coisas mais escondidas, que são também complexas, mas que são ao mesmo tempo mais simples.

Um dos aspectos que me impressionou no seu livro, do ponto de vista humano, é o facto de se notar a compaixão que sente por alguns dos doentes com que trabalha. É para si por vezes difícil lidar com alguns destes dramas humanos?

É extremamente difícil e não é preciso ser especialmente "simpático", no verdadeiro sentido do termo, para sentir compaixão por estes doentes. Basta apenas pensar em nós próprios se estivéssemos na mesma situação. É extremamente difícil ver um músico exímio, por exemplo, que perdeu a capacidade de processamento auditivo ou um pintor que perdeu a capacidade de utilizar a cor ou, mais simplesmente, uma pessoa que nos parece extremamente agradável e inteligente, que tinha uma vida feliz e que perdeu alguns aspectos da memória ou da linguagem. A única palavra possível para descrever isto é dizer que são situações horrorosas para a pessoa e para os que estão à sua volta. É extremamente difícil lidar com isto. E esta é uma das razões pelas quais é importante estudar estes problemas.

Claro que há a razão a que chamo "aristotélica", a curiosidade humana, que para mim é mais do que suficiente. Se alguém me dissesse que não havia qualquer valor prático no trabalho que nós fazemos eu teria mesmo assim imenso gosto em fazer esse trabalho. O que é curioso é que há um valor prático. Quanto mais nós soubermos sobre a maneira como o cérebro produz certos fenómenos complexos da mente mais nos vai ser possível delinear programas de reabilitação. Há várias consequências práticas no nosso conhecimento que vale a pena sublinhar e que justificam o esforço e o tornam ainda mais valioso.

A área das ciências da cognição tem sido extremamente frutuosa e estimulante nos últimos anos. Tem alguma palavra especial para estudantes portugueses que estejam interessados nessa área?

Acho que é a melhor área para trabalhar neste momento. O que se está a passar nas ciências cognitivas, com a sua ligação à neurobiologia, é semelhante ao que se passou nos anos 60 e 70 com o desenvolvimento da biologia molecular. Trata-se de penetrar num conjunto de fenómenos extremamente complexos graças a várias descobertas. No caso da biologia molecular foi a descoberta da estrutura do ADN e a descoberta do código genético. Uma vez feitas essas descobertas abriu-se todo um novo campo, tanto de técnicas como de teorias e de possível entendimento.

O mesmo está a acontecer agora nas ciências cognitivas. Começou-se por um entendimento a nível molecular e celular de redes nervosas; e, agora, a possibilidade de termos scanners para estudar os fenómenos a nível dos sistemas está a desenvolver-se de uma forma extraordinária. Não tenho qualquer dúvida que nas duas próximas décadas o progresso será ainda maior. Portanto, quem trabalha nas ciências cognitivas está no lugar certo. As pessoas que quiserem compreender os grandes temas da filosofia e das humanidades podem perfeitamente fazê-lo nas ciências cognitivas. É uma actividade maravilhosa.

Desidério Murcho

Texto publicado no suplemento Livros do jornal O Independente (Junho de 2000)

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