Theresa Catharina de Góes Campos

  BOTÍN DE GUERRA

"A busca terminou. Ele está morto."

Documentário comovente sobre a luta das " Avós da Praça de Maio", que procuravam seus netos, afastados dos pais seqüestrados ou presos durante a ditadura militar na Argentina ( 1976 –1983). Nascidos quando suas mães estavam presas e, após o nascimento, separados de suas verdadeiras famílias. " Botín de guerra " (idem – Argentina/Espanha, 1999 – cor – 35 mm –dolby -- 118 min.), de David Blaustein, narra a tragédia contemporânea dos chamados " desaparecidos " : filhos, netos, genros e noras, amigos, vizinhos, conhecidos...

"Passado o tempo do parto, vi que eu deveria procurar não somente a minha filha, mas o meu neto também."

O filme registra o sofrimento de muitos, vítimas do poder ditatorial e testemunhas do desrespeito aos direitos humanos. Até crianças de quinze meses e de três anos afirmam se lembrar de como chegaram aqueles que levaram seus pais... A importância das fotos da infância para o reencontro com os avós. Principalmente aquelas preciosas fotografias com os pais.

"Queres mesmo encontrar meus pais? Encontraste a mim e não encontraste meus pais? Como se explica isso?"

Algumas perguntas perturbavam as avós, que não tinham como dar uma resposta verdadeira a seus netos.

"Como explicar o termo "desaparecidos" a uma criança de 9 anos, se nós não podíamos explicar a nós mesmos?" (...)

"Há mais de 8 anos eu pensava que ainda ia rever meus filhos...Acreditei que estavam nos campos de concentração, como alguns nos diziam...E já tinham sido mortos desde o início...e nos mentiram todo esse tempo!"

Comoção, violência e suspense – é o clima de " Botín de guerra", do começo ao fim do documentário.

"Compreendi que ele estava em casa, dentro de mim."

Avós, pais e filhos são entrevistados, contando a história oculta de " barbárie ". Todos ainda continuam muito comovidos. Chocados, traumatizados, falam com o coração. Um pai descreve a dor de não conhecer o seu filho, que a esposa teve quando estava encarcerada. O filho que o casal planejou e esperava com tanto amor!

"Eu morri naquele dia...nascendo uma outra pessoa dentro de mim."

Destaques de "Botín de guerra": o prólogo do filme; a apresentação dos créditos iniciais; a produção, direção, o roteiro, a fotografia, trilha sonora; a montagem; os arquivos de noticiários e os álbuns familiares; e a canção dos créditos finais - "Sin Cadenas".

O prólogo é um texto publicado em jornal do século XIX, sobre o que se fazia com os índios: os bebês eram arrancados de suas mães, para serem mortos.

"Não fui mais ao cemitério, porque ali estava apenas uma parte dela. Ela estava conosco, em casa, todo o tempo."

As avós confessam que precisaram reunir suas forças, quando pensavam não ter mais força alguma...

"A primeira vez que fui à Plaza de Mayo eu tremia como vara, porque havia tantos militares à nossa volta!"

O grupo de 12 avós que iniciou o movimento viu a sua primeira Presidenta "desaparecer", após entregar uma carta de denúncia a Cyrus Vance, quando ele visitou a Argentina.

"Assassinos! Assassinos!"

As prisioneiras grávidas, após terem seus filhos, eram levadas nos "vôos da morte".

"A gravidez fazia parte de um projeto de vida. (...) Mamãe, não queremos morrer, mas viver."

Como num autêntico milagre, "aquelas mães, enfrentando as piores situações, mantendo sua gravidez em condições desumanas, violadas, torturadas, tiveram filhos normais, inteligentes e bonitos."

Essas crianças, porém, viveram a sua tragédia pessoal, nas famílias que não eram as suas.

Uma jovem, afastada prematuramente dos pais que a amavam, confirma essa situação, em "Botín de guerra":

"Como alguém poderia amar, dar amor a uma criança que ele arrancou dos braços de sua mãe? A mãe que ele prendeu, torturou, violentou e matou? Não, essa pessoa não pode amar nem dar amor!"

Vinte e dois anos depois, a determinação dessas senhoras resolveu 64 casos, o que significa terem devolvido a dezenas de jovens a sua verdadeira identidade! Percorrendo o mundo, " As Avós da Praça de Maio " conseguiram apoio, inclusive, para as suas lutas jurídicas. Uma das vitórias foi incluir, entre os direitos humanos, o direito à identidade. E a criação do Banco Genético, com exames de sangue para o DNA, visando ao estabelecimento do índice "dos avós", assim chamado em honra às " Avós da Praça de Maio" e porque, na ausência dos pais, identifica os netos com segurança.

No filme, testemunhamos a grande alegria de um reencontro com duas avós, materna e paterna, possibilitado pelo exame de DNA. Assim como o encontro emocionado de dois irmãos:

"Ele era feio, mas muito lindo! "

(...) Ter irmão, sobrinho, ser tio... Ter uma família. Foi um reencontro muito lindo! Muita alegria! Foi tudo muito positivo! "

Todavia, as " Avós da Praça de Maio " não conseguiram impedir os indultos, concedidos por uma legislação
"da obediência devida", que libertaram centenas de criminosos, torturadores e assassinos. Segundo elas, uma das manifestações mais comoventes foi a "Marcha do Não" ( Não ao indulto para os seqüestradores de crianças). Como resultado dessa vitória, que lhes vem permitindo incluir o seqüestro de crianças como parte do plano total da ditadura, "estamos conseguindo colocar os culpados nas prisões". Com a exceção dos que completaram 70 anos, que ficam em "prisão domiciliar", "com o que não concordamos".

"Por maior que seja a minha dor, não quero me vingar. Não quero me igualar a eles. Não posso ter essa mancha do ódio em meu coração. Não seria bom."

A luta das avós continua. E a dos filhos também. A moça lê, para a câmera, com emoção e orgulho, a carta que seu pai lhe escreveu, antes de seu nascimento, dirigindo-se "A Juliana ou Ezequiel" , falando de seus ideais de viver para os outros, e não, egoisticamente.

"Sei que meus pais me amavam muito.(...) E a meu irmão. Por isso vou continuar procurando por ele. Não posso permitir que meu irmão fique com os assassinos de nossos pais. Seria inconcebível!"

Os jovens órfãos mostram admiração e compreensão por seus pais:

"Eram pessoas que lutavam por um mundo melhor. Fisicamente, hoje, não estão vivos, mas, com o que fizeram, sinto que, para mim, estão eternamente vivos."

Há 20 anos os pais de Rodolfo procuram pelo filho que era "o projeto de vida do casal".

Essas tragédias que atingiram tantas famílias são denunciadas por " Botín de guerra" , um registro cinematográfico que pode contribuir para que a história da ditadura argentina não venha a se repetir, nem na Argentina ou em qualquer outro país.

Theresa Catharina de Góes Campos
 
 

Jornalismo com ética e solidariedade.