Theresa Catharina de Góes Campos

  INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

" - Ele é só um brinquedo", diz o marido à esposa, que responde:

" - Não, ele é um presente. Um presente de você."

Filosófica, existencialista e muito perturbadora, a ficção científica "Inteligência Artificial" (A.I. Artificial Intelligence - EUA, 2001 - 146 min.), de Steven Spielberg (diretor, roteirista e co-produtor), tem o dom de nos levar à reflexão sobre o "desenvolvimento" da ciência e as questões fundamentais de nossa condição de seres humanos.

Há cenas de violência (inclusive, agressividade e crueldade como formas de diversão) e sexo que podem ser consideradas chocantes, sobretudo para crianças.Em atmosfera sinistra, encontramos uma profecia bem pessimista sobre o destino da humanidade.

No elenco, se destacam: Haley Joel Osment (de "O sexto sentido" e "A corrente do bem"), Jude Law ( o robô-gigolô), Frances O´Connor, Sam Robarts e William Hurt.

"Se um robô for capaz de amar, os humanos poderão amar esse robô? É uma  questão moral." (...)

Afinal, na disposição para amar, insere-se, também, a exigência natural do amor. E o sofrimento vivido nos tempos de crise, por causa dos desencontros sentimentais. As dificuldades da convivência familiar, social e interpessoal. 

"Um robô que não adoecerá, nem mudará." (...)

O sucesso do personagem gigolô expõe as relações sexuais em suas exigências e diferenças de comportamento, o realismo versus o romantismo. "Não me referi a sensualidade, e sim, a amar."

Destaques: temas e personagens; produção; trilha sonora de John Williams; fotografia (inclusive, fotografia submarina);efeitos especiais; e o prólogo, terrivelmente instigador...A humanidade dispõe de recursos escassos. O controle de natalidade faz-se com severidade, de forma ditatorial. As calotas polares derreteram e as metrópoles foram destruídas.
"Proponho construirmos robôs capazes de amar." (...)

Entre as reações negativas ao filme estão: seria longo demais, sentimentalóide, repetitivo e melodramático.

Minha posição é outra: como não se trata de um tema superficial, a maior duração facilita a análise crítica interior, íntima. Ir ao cinema para assistir a uma obra desse tipo requer uma programação sem pressão de horário. A repetição mostra-se didática, enfática quanto aos pontos essenciais ou que devem ser destacados no roteiro. Drama lírico desenrola-se poeticamente, pleno de metáforas e mistérios. Os sentimentos são a meta dos processos de sensibilização da humanidade. Não podem  ser demais. Precisam, somente, abrir espaço, também, para a racionalidade. Uma convivência de maturidade! Filmes têm objetivos diferentes, criando uma proposta diversificada.

"Parece muito real por fora.Mas, por dentro, não é real."

David, o robô-menino, ouviu da mãe adotiva a história de Pinóquio, encantando-se a tal ponto com o protagonista da fábula, que escolhe, com determinação, o seu maior sonho: "Tenho de me tornar real." Inicia, então, uma busca desesperada para encontrar a Fada Azul, que transformou o brinquedo de Gepeto em garoto de verdade e poderá, igualmente, lhe dar a tão sonhada humanidade.

Ele deseja tornar-se um menino de verdade porque ama sua mãe adotiva, Mônica. Também para ele, a palavra "mamãe" tem significado especial, um som mágico, de acalanto. Não aceita sua condição de máquina. Almeja ser gente.

"Se eu me tornar real, poderei voltar. E minha mãe voltará a me amar."

O robô-criança, misturando fantasia e realidade, imagina que sua mãe adotiva, incapaz de ver defeitos no filho verdadeiro, o acolherá como se ele fosse mais um filho, igual ao que ela ama por ser de carne e osso, fruto de seu ventre. David sempre pede "me proteja, me proteja" e busca o afago de outra mão, a segurança proporcionada pela proximidade do ser amado ou, simplesmente, de outra pessoa (um robô também lhe serve...).
"Este é especial. Muito amor foi colocado nele. Você é unico, sabe, David?"
Mas o pequeno robô já estava bastante chocado, com a surpresa de encontrar tantos meninos iguais a ele.

Steven Spielberg revelou que, na década de 80, "Stanley Kubrick contou-me confidencialmente uma linda história impossível de esquecer. Acho que foi a cuidadosa mistura de ciência e humanidade que me deixou ansioso para ver quando Stanley a contaria e, depois que ele se foi, de me fazer querer contá-la para ele."

"Deus criou Adão para amá-LO."

Kubrick já havia prometido a direção para Steven Spielberg desde 1994. Para garantir a fidelidade ao projeto, Spielberg escreveu o roteiro, como fez em "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (1977).

Inspirado em conto de Brian Aldiss publicado na Harper´s Bazaar, em 1969, recentemente editado no Brasil, na coletânea "Superbrinquedos duram o verão inteiro", o clima sombrio e assustador do filme relembra, em diversos momentos, o seminal "Blade Runner - Caçador de Andróides" (1982), de Ridley Scott, assim como "Gattaca- a experiência genética" (1997), de Andrew Niccol, com Ethan Hawke e Uma Thurman nos papéis principais (e uma fotografia deslumbrante).

"Só os humanos acreditam no que não vêem."

Essa referência à fé religiosa soma-se à questão da incredulidade.

" - Vejo a lua.

- Ela é real?

- Não sei."

Algumas perguntas de David são bem características da mente infantil. Quando não compreende uma ordem, ou as circunstâncias parecem confusas, ele indaga:

"É brincadeira?" (...)

"Você vai morrer? Quando?" (...)

"Cinqüenta anos é muito tempo?"

Os homens invejam o robô, têm ciúme de sua humanidade artificial. Escondem-se atrás de armadilhas, têm atitudes não-éticas.
 "Só os iguais a você lhe dão segurança. Não vá por ali, ou vão destruí-lo."
(...) "Eliminem os robôs." (...)

"Tem certeza de que não é humano? Não quero outro incidente como o de Trenton."

Em muitas situações, somos cruéis e, contemplando a realidade de uma perspectiva superficial, nem percebemos a crueldade das crianças ciumentas ao extremo. Chegam a fazer e a ensinar atitudes erradas; criam situações com potencial de conflitos geradores de julgamentos injustos.Somos capazes de usar os outros como objetos. Muitas vezes, quando atingimos nossos objetivos, sem hesitar, livramo-nos de nossas "coisas", jogamos fora os instrumentos, consideramos tudo descartável e adotamos outros "meios" aparentemente mais eficazes.

"Se foi criado para amar, é razoável supormos que o robô pode odiar."

David e o gigolô Joe são personagens que colocam na tela a oportunidade de um debate ético sobre assuntos atuais: biotecnologia, cibernética, a interação familiar e social, as relações sexuais.

"Depois que você fizer amor comigo, nunca mais desejará estar com um homem (real)."

E lhe diz frases maravilhosas, elogiosas e poéticas.

Ao término do filme, o questionamento permanece para nós:

"É brincadeira?"

Ouso responder, com o coração na mão:

É real.

Theresa Catharina de Góes Campos
 

Jornalismo com ética e solidariedade.