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MEU TIO DA AMÉRICA
Com "Meu tio da América" (Mon oncle d´Amérique -
França, 1980), o diretor Alan Resnais deu a sua
contribuição magistral para um mundo melhor.
"A única razão de ser de um ser é ...ser.
Conservar a sua estrutura."
Para os que consideram o cinema apenas uma
diversão superficial e sem maiores efeitos, as
palavras acima pareceriam um texto de obra
filosófica. Estariam enganados, porém. Aquele
pensamento, expresso em vocábulos aparentemente
muito simples, mas de profunda significação, é a
citação inicial que se apresenta ao público na
introdução do filme "Meu tio da América". Com
esse impacto verbal, Alan Resnais revela de
imediato a sua intenção, como diretor de uma
obra que precisa e merece ser vista muitas e
muitas vezes, tais os benefícios que pode trazer
para a vida de cada um e da sociedade em geral,
sem restrição de tempo ou espaço.
Sendo a originalidade a marca de sua carreira
cinematográfica, o cineasta aborda os mecanismos
da memória (como fez em "Providence") e o
paralelismo de épocas diversas (como em "O ano
passado em Marienbad") de maneira bastante
especial, criativa na forma e no conteúdo, e
transbordante de informação e reflexão crítica.
"O filme surpreende, desafia, aguça a
sensibilidade e convida à reflexão, mas tudo
isso numa linha bem-humorada, rara num
realizador em geral monopolizado pelos mais
angustiantes debates em torno da condição
humana. Tratando seus personagens como
instrumentistas de uma orquestra de câmara,
Resnais abre mão do comando que poderia exercer
sobre eles - e que exerceu sobre os personagens
de seus outros filmes - para observá-los,
divertido, complacente, um pouco à maneira de
Truffaut.
Essa liberdade de ação se combina à beleza de
imagens requintadamente construídas, como é sua
marca registrada, tornando o filme leve, fluido,
belo em todos os sentidos. As interpretações de
Gérard Dépardieu, em seu melhor desempenho até
hoje, de Nicole Garcia e Roger Pierre contribuem
para que "Meu tio da América" se defina como
obra-prima." (transcrição de texto reproduzido
pela Fundação Cultural do DF, sem indicação de
autoria, e distribuído ao público no Cine
Brasília).
"Mon oncle d´Amérique" divulga a teoria
científica do biólogo Henri Laborit,
exemplificando-a pela ficção - a história de
dois homens e uma mulher, de cidades e origens
sociais e familiares diversas, da infância à
idade adulta. Enfatiza a influência da família,
das recordações infantis, dos jogos e das
atividades iniciais. Destaca a importância do
meio ambiente no desenvolvimento de
personalidades e atitudes.
Voltando a citar o prólogo do filme (Prêmio
Especial do Júri no Festival de Cannes de 1980):
"As plantas passam a vida toda no mesmo lugar,
sem se deslocar, extraindo do solo em que estão
tudo de que necessitam para viver."
Com a sua construção visual colorida (na qual
também inseriu imagens em preto e branco), Alan
Resnais aborda o problema da dificuldade de
adaptação às constantes mudanças da vida atual,
a relutância na aceitação da nova realidade
sócio-econômica (exemplificado na figura do
administrador de uma pequena empresa, quando
esta é absorvida por uma grande companhia, com
novas idéias, novos métodos e direção nova).
Isolado da família (que não se mudou com ele
para o local da nova função, que lhe foi imposta
sem alternativa de recusa ou outra opção
qualquer...), tenso, sentindo-se rejeitado e
humilhado, sem saída, o marido e pai gourmet ,
apesar de aparentar ser fisicamente forte, tenta
suicídio. Ora, logo nos seus primeiros momentos,
"Meu tio da América" enuncia uma definição que
precisamos apreender para conseguirmos
sobreviver com dignidade e em consonância com o
nosso potencial:
"Angústia é a impossibilidade de se controlar
uma situação."
As idéias, experiências e conclusões do
cientista Henri Laborit, divulgadas pelo filme,
candidato ao Oscar de 1981 (melhor roteiro),
sobre os conflitos sociais, motivam análises
mais profundas: trata-se da luta pelo poder, uma
luta que não respeita os direitos dos outros e
provoca conflitos. Revela-se a guerra, então,
como a ambição da propriedade sem restrições e
sem limites, por qualquer meio, inclusive o
violento, agressivo.
"Meu tio da América" aponta a presença dos
outros em nós: nós somos os outros, que atuam
sobre nós, que nos influenciam de um modo ou de
outro. Daí ser um filme atual e permanente -
universal. Os personagens são hodiernos: a atriz
independente e liberada que, depois de
conquistar um alto funcionário público (casado e
pai de um casal de filhos menores), vê-se
cuidando das crises de angústia e úlcera que ele
passa a ter; uma atriz que, mais tarde, será
enganada pela dramatização e astúcia (o amor? da
esposa traída que a procura para lhe pedir que
permita ter de volta o seu marido, pois ela está
sofrendo de uma doença fatal e tem pouco tempo
de vida...Assim, a amante o abandona e o casal
se reconcilia. Na sua solidão, tentando
compreender o que ocorrera em sua vida
particular, a atriz - transformada por
necessidade em desenhista de modas - procura o
seu ex-amante e a família dele, descobrindo,
finalmente, que fora ludibriada. E a esposa,
vitoriosa, ainda lhe diz que, se não fosse a sua
ajuda (dela, esposa), o marido não teria escrito
o livro sobre o sol que há muito planejava
publicar.
Entre as cenas de experiências profundamente
humanas, intercalam-se experiências
laboratoriais com ratinhos, quando Laborit
ilustra com muita ênfase os efeitos altamente
perigosos da angústia, do stress, enfim, da
tensão que nos fere intimamente e provoca
úlceras, câncer, e muitos outros males e
distúrbios funcionais, a nosso organismo tão
sensível e frágil. Como não podemos reagir
violentamente contra os outros que nos
desagradam, ou ferem, ou irritam ou nos
contrariam, escolhemos, erradamente, ser
agressivos contra nós mesmos. O suicídio, por
conseguinte, é a agressão máxima que se comete.
Material publicitário de "Meu tio da América"
apregoa:
"O que os ratos brancos podem nos ensinar sobre
a condição humana."
De acordo com as estatísticas mais recentes, o
número de suicidas vem aumentando
assustadoramente, no mundo inteiro, em todas as
faixas etárias (até crianças e adolescentes se
angustiam a ponto de perderem a esperança!) e
condições, mas a idade dos que se suicidam está
baixando!
A solução começa, é claro, na compreensão de que
o problema existe e que a angústia precisa ser
considerada como um ponto de partida para se
encontrar uma saída positiva, humana, ainda que
se recorra a uma alternativa, adaptação, ou a um
redirecionamento de nossos interesses e
objetivos. Daí a importância da criatividade -
cuja definição, aliás, é, segundo cientistas da
NASA que se pronunciaram a respeito, a
capacidade de se resolver problemas. Sobreviver
é nossa obrigação para com a vida que existe em
nós. Precisamos realizar nosso potencial,
conservar nossa estrutura, enfrentando e
vencendo os obstáculos, sem deixar que a
angústia nos domine, asfixie e nos leve à
destruição.
Um dos trechos mais importantes de "Meu tio da
América" comenta que, na hipótese de uma criança
ser criada numa floresta, entre os animais, sem
nenhum contato com outro ser humano, ainda que
se desenvolvesse fisicamente, jamais seria um
homem no sentido exato da palavra, devido à
ausência do contato humano, pois é a comunicação
com outras pessoas que possibilita a plena
realização do ser humano. (Ver o filme "O garoto
selvagem", de François Truffaut; ler meu
comentário.)
Infelizmente, nem todos sabem apreciar essa
obra-prima (a que TODOS DEVERIAM ASSISTIR!, por
ser um filme que nos ensina a viver, nos faz
refletir sobre nós mesmos, sobre a nossa
sobrevivência pessoal, sobre a nossa realização
como indivíduos inseridos em um contexto
social...) do cinema contemporâneo europeu. Isto
porque a comunicação de massa de baixa qualidade
e o ritmo atual da vida nas metrópoles
contribuem para a uniformização do espectador
num estado de embotamento intelectual que se
nega a pensar, raciocinar, refletir e,
sobretudo, aprender, quando isto exige uma certa
dose de concentração e esforço. O hábito de
assistir a programas repetitivos e fáceis, no
conforto de seu lar, sem nenhum esforço para
selecionar outras produções de maior
profundidade e de nível mais elevado, realizadas
inteligentemente sobre assuntos sérios,
filosóficos ou científicos.
Assim, uma janela cultural é fechada previamente
pelo espectador que não busca seu
aperfeiçoamento intelectual através da diversão
caracterizada pela excelência de qualidade. Aos
poucos, ele vai perdendo a capacidade de ler com
rapidez as legendas e apreender o significado de
um roteiro mais complexo, hermético ou
simbólico. Conseqüentemente, os que se acostumam
à mediocridade, talvez durmam ou se retirem da
sala de projeção na primeira parte do magistral
"Meu tio da América", reclamando:
"- Não sabia que era documentário" , ignorando
que os gêneros artísticos nem sempre são rígidos
ou limitados na sua criatividade, alienados
quanto à possibilidade do cinema divulgar
pensamentos, ensaios e relatórios científicos
por meio da ficção dramática.
Mesmo entre aqueles que assistem ao filme até o
fim, ainda encontramos os que, honestamente,
perguntam:
"- Por que o título?! Não tem nada a ver!"
Mas é claro que tem a ver! A mensagem do "tio da
América" está explícita, em um determinado
momento da película, quando o público fica
sabendo que era um parente citado porque
decidira se mudar para a América e continuava
pobre. A família repetia a história toda vez que
alguém pensava em efetuar qualquer mudança em
sua vida, em seu empenho para resistir a
qualquer interferência na sua rotina
tradicional. Todavia, a criança já percebia que
era um relato mal contado e que o tio, na certa,
enriquecera. O menino acreditava que o "tio da
América" possuía realmente um tesouro, escondido
em algum lugar... e, como acontece com todo
tesouro, merecia ser procurado sem
esmorecimento. É bem verdade que, em se tratando
de símbolos e mensagens profundas, as leituras
dos espectadores podem ser diferentes,
pessoais... o que se constitui, portanto, em
mais uma riqueza do filme. Quanta simbologia em
um simples título! E como é importante que um
título leve à reflexão e se revele aos poucos,
devagar, gradualmente, desvendado lentamente,
esclarecido pela mente e pela sensibilidade
maravilhosa do coração humano!
Durante a projeção e ao término da sessão,
percebemos que precisamos rever "Meu tio da
América" ... para que possamos nos lembrar e
compreender melhor os diálogos, a narração, as
imagens. E que mais se poderia exigir de um
filme, quando provoca, nos espectadores, a
necessidade e o desejo de vê-lo mais vezes?!
Theresa Catharina de Góes Campos
Fundadora e Jornalista Responsável
Cineclube dos Educadores
Brasília, 6 de agosto de 1987 |
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