Theresa Catharina de Góes Campos

     

GATTACA

Fonte: www.lumiere.org

BEM-VINDOS A GATTACA

de Andrew Niccol

1997 – 1h46 – USA (“Gattaca”)

com: Ethan Hawke (Vincent Freeman/Jerome Morrow), Uma Thurman (Irene Cassini), Jude Law (Jerome/Eugene Morrow)

roteiro: Andrew Niccol

fotografia: Slavomir Idziak

música: Michael Nyman

Sebastian  Barre, 04/05/98 (nota: não há revelações nesse artigo, pode ser lido antes de assistir ao filme):

VINCENT FREEMAN tem grandes projetos, grandes sonhos: as estrelas.  Mas o seu lugar, o lugar que lhe é reservado, não é aqui.  Vincent não teve “sorte”.  O destino, infelizmente, é fundamental: ele revelou o seu código genético, combinando-se o ADN de seus pais da forma  mais “convencional”, mas uma simples amostra sanguínea  determinou seu destino.  Prenúncio de um vilão, mas constitui um acontecimento esperado num mundo que não é tão futurista como aquele: a genética estabelece suas próprias leis e dita regras, impõe-se o eugenismo.

Essa simples gota de sangue inicial o classifica impiedosamente desde o nascimento entre os “capazes”, a elite, geneticamente e estaticamente viável e capaz, e os “incapazes”, pré-destinados a tarefas menos valorizadas pois apresentam pequenos defeitos e imperfeições genéticas de que a mãe Natureza parece sofrer. 

Uma sociedade excessivamente limpa, regulada, fria, desconfiada, tendo assimilado em todos os níveis essa forma de discriminação, incluindo Gattaca, cidade das estrelas, é um exemplo: a mínima sujeira é perseguida, a poeira abolida, as identidades e os potenciais são eternamente monitorados.

Mas aquilo que a hereditariedade promete,  que as combinações de números e de esperança de vida querem impor, Vincent o “incapaz em função de um defeito” não os aceita, ele acredita na força de um certo dom natural, ele é determinado, ele tem um plano: trocar, dividir sua identidade com Jerônimo, um “capaz”, sujeito brilhante cujo destino surpreendeu-o com uma mudança não-genética, privando-o do uso de suas pernas.  Este, então, decide desde o início dividir sua existência de forma “dupla”, reclusa e cínica.

Para alcançar seus objetivos, fazer parte da “elite das elites”, penetrar e fraudar os controles genéticos ininterruptos de Gattaca, é quase alcançar as estrelas, ele deve, então, apagar diariamente e minuciosamente todos os vestígios corporais de Vincent, incorporando e desenvolvendo características genéticas desde as mais ínfimas que Jerônimo lhe transmite todos os dias.   Um esforço constante, impiedoso, irreversível, que apresenta um só caminho, com o qual Vincent se acostuma diariamente, aproximando-se de seu objetivo, sua partida iminente.         Mas o assassinato de um de seus superiores irá criar uma desconfiança a seu respeito por parte de uma polícia científica cujos métodos são ainda mais minuciosos.

Primeira criação de Andrew Niccol (e responsável pelo roteiro de  “O Show de Truman”), filho de publicitário, ele assina um filme e um cenário brilhante que pode ser classificado pomposamente de multi-genérico.   Ele demonstra não ser um simples filme do gênero biogenético:  a história simples, cujas premissas abordadas anteriormente são rapidamente desenvolvidas, me pareceu dominada de perfeição, reservando surpresas, zonas de mistério, cenas de suspense de excelente desenvolvimento.  A atmosfera na qual a limpeza se revela rapidamente opressiva, é um fator que domina a trama.

Num segundo plano, certamente estremecemos, conscientes do caráter não tão utópico da história.   Recordamos de “O Melhor dos Mundos” (“Admirável Mundo Novo”, “Huxley”, 1980), de “1984” (Orwell), de “THX 1138” (Lucas, 1970).           “Gattaca” não é um filme de ficção científica, e Niccol não utiliza, por outro lado (por falta também, de recursos financeiros) efeitos especiais, veículos ou visões futuristas delirantes.  A arquitetura característica da década de 1950 se apresenta com linhas redondas, claras e lisas.  Deixando-se de lado alguns detalhes, tudo é rapidamente transponível e esse efeito inteligente conduz imediatamente o espectador para “dentro” da história.  Trata-se, na minha opinião, de um “pólo inteligente de antecipação dentro de um cenário de fundo biogenético”!  E que tema!

Força-se uma situação já determinada, se é verdade que o debate biogenético está muito “na moda”, não se deve esquecer que até as melhores intenções podem sempre incitar atividades nocivas...  O eugenismo, mesmo não se caracterizando como teoria recente, provoca o debate que não deve ser finalizado sobre a preocupação compreensível de se curar doenças hereditárias e o desejo de se encontrar um certo “conforto genético” para cada indivíduo, para seus descendentes, ou ancestrais, e finalmente como uma preocupação de senso  comum (conforme as primeiras cenas e a “criação” do irmão de Vincent).

Mas o que significa essa resolução? Trata-se de esconder os “defeitos genéticos”? Um gene de beleza mal formado, um indivíduo que gagueja? Todas as nossas características são tendências naturais?  O que fazer com o que se adquire e o que se perde durante a vida? O gene do alcoolismo e da violência existem? (o filme responde que “sim” na cena da introdução).   Niccol, o diretor, que parece ter estudado o assunto, direciona o debate para as práticas genéticas discriminatórias que ele observou, atualmente adotadas  por algumas grandes empresas de seguro (em concordância com as entrevistas realizadas).  Isso causa medo pois essas práticas não são obrigatoriamente “adotadas” como em Gattaca, mas são utilizadas, muitas vezes, sem o nosso consentimento, de forma inperceptível e a todo momento (através de um fio de cabelo, da saliva, de uma amostra do corpo, etc.).   Mas ele aborda um discurso mais amplo sobre “o triunfo da vontade humana”, frente a uma situação que lhe é imposta.  Aborda-se essa questão no filme, contudo, acho que não se deve enfatizar isso demais, mas sim, a visão  extremamente binária (ou terciária) da sociedade, o aspecto de limpeza excessiva e a beleza como sinônimo de perfeição genética, e o fato de Vincent finalmente procurar se ajustar a esses “parâmetros”.

Pessoalmente (e eu estou certo que isso se destaca ao público americano) percebo também uma reação favorável por parte do nosso glorioso partido da vergonha, a Frente Nazistsa (FN). Nesses laboratórios mediterrâneos como Toulon, Vitralles, há evidências de que se pratica uma discriminação genética:  as municipalidades negligenciam o direito do solo, da terra natal,  dando-se relevância ao direito do sangue,  nós somos franceses e felizes de sê-lo pelo sangue, discrimina-se e recompensa-se segundo esses princípios, e sabe-se  que são ilegais (assim como no filme), mas implícitos (também como no filme).  Há um Vincent nessa situação, espera-se que ele certamente exista.

(...)

Primeiro filme, e excelente surpresa, tem-se a impressão de se ter assistido a um filme brilhante, leve, inteligente, filmado sem atropelos, genérico e ao mesmo tempo profundamente humano pois acompanha o desenrolar de quatro destinos (Vincent, seu irmão Aton, Jerônimo, Irene) complexos e emocionantes.  Mas acima de tudo, um filme de muita simplicidade.  Num gênero de filme onde se poderia facilmente lançar grandes propostas, dar lições, Niccol não pensou nisso, transmitindo somente aos espectadores as pistas para compreensão.  Certas cenas (principalmente no final, maravilhoso) são extremamente bem produzidas, mas nunca baseadas em verdades absolutas.

1TRADUÇÃO DE ELIZABETH FERNANDA C. BARROS
Assessora Executiva do Cineclube dos Educadores
e da Assessoria de Imprensa Theresa Catharina

REVISÃO DE THERESA CATHARINA G. CAMPOS

 

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